sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Digressão: Helena, Nietzsche e Lacan


O post anterior, sobre o filme Jogo de Cena, me levou a reler coisas sobre o feminino e reencontro com felicidade em meus arquivos um belo texto da Barbara Cassin - "Ver Helena em toda mulher", publicado no caderno Mais! da Folha de São Paulo, e objeto de uma conferência sua no IFCS em 2005. Transcrevo dois extratos. O primeiro mostra como Helena é um artifício grego constituído de múliplos textos, músicas, palavras, gêneros literários, e no qual consta uma ótima citação do Nietzsche (Gaia Ciência) sobre a "superficialidade" grega. O segundo é uma maravilhosa tirada que encerra o texto e que sucede um diálogo com o seminário "Mais, Ainda" de J. Lacan. Ainda que tal diálogo seja sem dúvida importante para a plena compreensão da tirada, limito-me apenas a esta, que basta a si mesma.

1. "A bem dizer, para explorar a questão, seria preciso considerar Helena como um objeto cultural multimídia. A música é evidentemente de uma importância considerável, em particular as operas e operetas que foram escritas sobre ela. Mas, qualquer que seja o médium, há uma característica forte, digamos metodológica, do mundo de Helena, é que ele não é enquadrado. Contra o domínio fixo das ordens estritas, todos os gêneros se comunicam, inclusive os gêneros literários: pintura, música, filosofia, mas também epopéia, tragédia, comédia, poesia lírica, romance até. É preciso articular, com esse primeiro traço configurante, um segundo, que libera o tempo: sem parar, os textos, as músicas, as palavras, que fazem frases sobre Helena são palimpsestos e palimpsestos de palimpsestos, ironicamente estruturados por sua reutilização. Não há um texto que não seja entretecido de outros textos, uma música que não seja entretecida de outras músicas, nenhuma figuração sua sobre um vaso que não seja entretecida de todas as outras; e isto é profundamente grego, e profundamente cultural : Helena é um objeto inteiramente produzido. Nesse mundo em circulação e em expansão folheada, que eu disporia de bom grado do lado feminino, não poderia haver, de um lado, o sério ou a profundidade e, de outro lado, a superfície, o superficial.
'Ah esses Gregos, eles sabiam viver: o que exige uma maneira corajosa de se ater à superfície, à dobra, à epiderme, de adorar a aparência, de crer nas formas, nos sons, nas palavras, no Olimpo inteiro da aparência! Esses Gregos eram superficiais — por profundidade.'
Em uma frase, Nietzsche reencena todas as separações, desde a separação platônica do sensível e do inteligível; não se dirá mais : isto é filosofia, de homem / isto é literatura, feminina. O kosmos de Helena, mundo em expansão, vai da cosmética (seu espelho, suas pinturas) à cosmologia (Castor e Pollux, seus irmãos constelações). Uma tal relação entre cosmética e cosmologia, proponho chamá-la de beleza."

2. "Donde essa tirada, para não dizer retirada, para terminar: o homem falha e goza como filósofo, a mulher falha e goza como sofista."

Um comentário:

romulo de almeida portella disse...

Dessa Helena vista como objeto intertextual por várias artes fica-me a pergunta se é um mito; ou se são assim os mitos...

...ah adoro essa citação de Nietzche!