domingo, 29 de novembro de 2009

Do esquecimento e da liberdade

Há pouco ocorreu um debate na SciencePo (Paris) acerca do direito ao esquecimento numérico, uma reivindicação legal por parte de senadores e apoiada pelo CNIL (La Commission Nationale de l'Informatique et des Libertés). O argumento central dessa reivindicação é o de que a profusão de dados pessoais nos ambientes da web 2.0 (redes sociais, blogs, microblogs, sites de compartilhamento de vídeo e imagem etc) não estariam sujeitos ao esquecimento 'natural', uma vez que a Internet teria uma memória perene, indelével, "eidética". Diferentemente da "natureza humana", que implica o esquecimento, a mudança, a contradição. O perigo da memória perene da rede, ainda segundo o argumento, seria o de condenar irremediavelmente as pessoas a este passado, que pode ser usado, em seu prejuízo, por futuros empregadores, empresas, serviços e mesmo outros indivíduos. A reivindicação é a de que os indivíduos tenham o direito jurídico de requerer o apagamento de seus dados pessoais em sites, blogs etc.

A medida insere-se no âmbito das tentativas de proteção à vida privada na Internet e clama pela liberdade e controle dos indivíduos sobre os dados que deixam na rede. Entretanto, não apenas o tiro pode sair pela culatra (dado que as medidas para fazer cumprir a lei podem ser mais ainda mais restritivas à liberdade do que a sua ausência), como há nessa reivindicação uma delicada discussão sobre a relação entre esquecimento e liberdade na rede.

Seguramente, pode-se afirmar (e Nietzsche dá a lição) que entre esquecimento e liberdade há uma relação de incitação recíproca; e essa relação está na base da possibilidade mesma do pensamento. Sem esquecer, não é possível pensar (vê-se o Funes de Borges), e sem pensamento não há liberdade. Contudo, no caso específico do direito ao esquecimento numérico, esta relação não é nada evidente, ao menos como ela está sendo proposta, em seus termos legais. Um dos problemas consiste no artigo 1 da proposta de lei, que deseja instituir uma espécie de pedagogia da livre expressão na rede, ensinando aos jovens os perigos da exposição de seus dados e os meios de proteger a sua privacidade. Certamente, é importante ensinar aos jovens a protegerem a sua privacidade, mas este ensinamento da lei do esquecimento numérico se insere no âmbito de uma pedagogia dos riscos de uso da Internet, articulada, inclusive, à lei Hadopi, que criminaliza o download de arquivos protegidos por direitos autorais, como bem aponta Manach.

"Le problème, c’est que cet enseignement serait calqué sur celui, introduit par la loi Hadopi, du “droit de la propriété intellectuelle, et les dangers du téléchargement et de la mise à disposition illicite d’oeuvres ou d’objets protégés par un droit d’auteur ou un droit voisin pour la création artistique"…
Je trouve ça très bien d’apprendre aux élèves à protéger leur vie privée -sauf que je préfère dire “défendre leurs libertés“, c’est plus constructif-, mais si ce sont les mêmes personnes qui vont expliquer aux élèves “surtout ne télécharger pas“, et qui vont ensuite leur expliquer “surtout ne montrer par vos fesses sur l’internet“, le message ne passera pas, et on va passer pour des vieux cons, tout simplement, et les jeunes, à 14 ans, ils vont le faire, évidemment, surtout si c’est lié à l’Hadopi !..."

O essencial, me parece, é que o controle dos indivíduos sobre seus dados pessoais e sua privacidade seja assegurado pelo direito à liberdade e ao anonimato na rede (o que é violado pela lei Hadopi). O respeito a esses dois princípios tornaria, creio, a questão do esquecimento secundária, ou menor, não justificando uma lei específica para tanto. Claro que isso não invalida a imensa e relevante discussão sobre as novas modalidades de arquivo e memória pessoal geradas no ciberespaço, voluntaria ou involuntariamente, bem como os tipos de controle e monitoramento a que esses dados estão sujeitos, muitas vezes à revelia dos indivíduos. Tais questões são fundamentais; o que não é claro nem evidente é o quanto a lei do esquecimento numérico é uma boa resposta a tais questões, ou uma via que amplia ainda mais a demonização da Internet como um lugar de altos riscos a serem controlados.
Abaixo, dois links de artigos, além dos que já foram mencionados acima:
http://www.rue89.com/explicateur/2009/11/11/le-droit-a-loubli-numerique-un-casse-tete-jurididique
http://www.lemonde.fr/technologies/article/2009/11/12/la-delicate-question-du-droit-a-l-oubli-sur-internet_1266457_651865.html

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