Tenho pesquisado sobre as relações entre a cartografia e a vigilância, que são tão antigas quanto variadas. No âmbito visual, os mapas (especialmente aqueles que se inserem na tradição das Imago Mundi) encarnam uma perspectiva de sobrevôo, cara ao olhar vigilante e suas múltiplas figuras míticas ou históricas. Olho de Deus, Ícaro, pássaro, esta visão cartográfica é suficientemente distante e alta para abarcar uma 'totalidade' qualquer, sendo 'pan-optica' por excelência. Não por acaso, os mapas são decisivos na arte da guerra e das conquistas territoriais, demarcando e materializando fronteiras. A partir do século XVII, essa visão cartográfica é inclusive associada à "perspectiva militar ou
cavalière" (Comar, 1992), designando um olhar global a partir do qual a ordem é lisível em detalhe e onde a invisibilidade do todo se inscreve na visibilidade do plano.
O mapa e a perspectiva cartográfica como dispositivos de controle e vigilância do território não se restringem, contudo, ao domínio visual, sendo importantes imagens da razão científica moderna e sua ordem representacional, ainda que de forma menos direta. Em tal ordem, a visão-idéia clara e distinta do mundo é tributária de um olho cognoscente que se coloca à distância e em sobrevôo (como diz Husserl a propósito da razão cartesiana). Segundo essa perspectiva, a verdade do mundo só é visível pela representação, mais clara no plano cartográfico do que nas dobras e confusões do corpo a corpo com o mundo. A racionalidade científica moderna confunde-se com a racionalidade cartográfica, como nos mostram o
Astrônomo e o
Geógrafo de Vermeer. Além disso, a projeção cartográfica, o mapa convencional, simula uma perspectiva apreendida ao mesmo tempo de todos os ângulos e de lugar nenhum, fazendo o pan-optico e o sinóptico conviverem, representando uma ordem supostamente neutra segundo a qual o mundo se oferece como um objeto estável de conhecimento, supervisão, inspeção, controle, domínio.
Geógrafo, Vermeer, 1668
As linhagens etimológicas também cruzam o ato de vigiar à produção de mapas, especialmente explícito na palavra "survey", que vem do latim
supervidere (super-visão) e que a partir do século XVI passa a significar também o ato de produzir mapas. Essa descoberta eu devo a um post do
André Lemos (que aliás tem escrito e exercitado ótimas coisas sobre mapas); diz ele:
"Lendo sobre mapas e cartografias (ver, por exemplo, "The World Through Maps, A History of Cartography", de John Short), é comum ver associado o ato de produzir mapas com "surveying", que está diretamente ligado a "surveillance", ou seja, mapas como representação de um determinado olhar. Como explica Short, "survey began to mean a mapping exercice"... "Survey" em português tem o sentido de "relatório", "enquete", "exame"... Trata-se, mais precisamente, de uma forma de "olhar atenciosamente para algo" ou de "examinar dados de áreas" ou "construir mapas".
Por fim, uma agradável descoberta que ainda preciso checar com mais calma e cuidado, mas que já vale ser mencionada, embora não toque no tema da vigilância. Ao que parece, vem da nossa língua portuguesa a palavra cartografia (que reúne o latim
charta (folha de papel) e o grego graphein (escrever, pintar, desenhar), e surge tardiamente no século XIX. Segundo Beatriz Bueno (2004), o neologismo teria sido inventado pelo historiador português Manoel Francisco de Barros e Sousa (1791-1865), II visconde de Santarém, e redigido numa carta de 8 de dezembro de 1839 endereçada ao historiador brasileiro Francisco Adolfo Varnhagen, em que diz – ‘invento esta palavra, já que aí se tem inventado tantas’”. (Ávila, 1993, p. 110
apud Bueno, 2004).
Brasil, Miller Atlas, 1519
Referências:
Comar, P. La perspective en jeu. Paris: Découvertes-Gallimard, 1992
Buci-Glucksmann, C. L'oeil cartographique de l'art. Paris: Galilée, 1996.
Bueno, B. P. S. "Decifrando mapas: sobre o conceito de "território" e suas relações com a cartografia" in Anais do Museu Paulista, USP, n. 12, 2004.
Short, J. S. The World Through Maps: A History of Cartography. Firefly Books, 2003.