domingo, 21 de fevereiro de 2010

Cuide de você/Prenez soin de vous

Já no peúltimo dia no MaM/Rio, fui ver a exposição da Sophie Calle (Cuide de Você). Para quem não viu, a "pedra de toque" da exposição é um e-mail de ruptura amorosa escrito por "X", ex-namorado da artista. A partir desta carta, S. Calle cria mais um dos seus dispositivos a um só tempo artístico e terapêutico. Este é, ainda, especialmente feminino e vinga com humor o abandono chamando 107 mulheres para interpretar a carta, segundo seus talentos ou profissões: tradutora, filóloga, psiquiatra, atiradora, atriz, crimonologista, bailarina, juíza, musicista, cabalista, diplomata, vidente, mãe, muitas outras, e mesmo uma papagaia.

"J' ai reçu un mail de rupture. Je n'ai pas su répondre. C'était comme s'il ne m'était pas destiné. Il se terminait par ces mots : Prenez soin de vous. J'ai pris cette recommandation au pied de la lettre.J'ai demandé à cent sept femmes - dont une à plumes et deux en bois -, choisies pour leur métier, leur talento, d'interpréter la lettre sous un angle professionnel. L'analyser, la commenter, la jouer, la danser, la chanter. La disséquer. L'épuiser. Comprendre pour moi. Parler à ma place. Une façon de prendre le temps de rompre. A mon rythme. Prendre soin de moi."


Tomar ao pé da letra o cuidado de si é, no dispositivo de Calle, fazer circular a palavra, coletivizar a hermenêutica arrancando-a do retorno sobre si para dotá-la de um outro movimento, voltado para fora e para muitos, para outrem. Ao ponto que, ao final, a letra original implode por excesso de interpretação. No fim da exposição, mesmo antes, pouco importa o que escreveu X, pouco importa X; as versões, traduções, traições, reações, revisões, dissecções do seu texto interessam tão mais que sua forma e conteúdo originais!

O apagamento da dor e do amor perdido é o apagamento do próprio texto de X; vingança sob medida em se tratando de um escritor. Melhor que "deletar", queimar ou responder eloquentemente é oferecer o texto de X à sobre-interpretação pública, feminina e profissional - não há dor, amor, escritor que resista a um tal dispositivo. Em certos momentos, o dispositivo vai além do humor, franqueando de forma inquietante o limite da exposição do outro, e é o cômico (em sua face ridícula, no sentido que lhe atribui Aristóteles) que vige sobre X e sua carta.
Esse destino do texto (e aqui já saio um pouco da exposição ou nela abro parênteses) é o destino e o risco de toda escrita, como indica a bela leitura que Derrida faz do Fedro de Platão: a palavra escrita perde seu detentor, seu defensor, seu pai, arrisca afastar-se da verdade (no sentido platônico) e vagar por toda parte, sujeita a sentidos diversos. A escrita também é um phármakon, um artifício a um só tempo remédio e veneno, que vem em auxílio da memória, mas que a trai e a enfraquece, favorecendo a rememoração em detrimento da reminiscência (via régia do conhecimento verdadeiro para Platão). E agora enquanto escrevo me dou conta que a minha lembrança do Fedro tem ainda um outro sentido que a conecta com a exposição, uma vez que neste diálogo o problema da escrita é intimamente atrelado à questão "o que é o amor?".
Seguindo o fio das associações despertadas por Calle e retomando o que acho mais interessante neste e em outros trabalhos da artista (como o Douleur Exquise, muito mais belo): a expiação da dor pela multiplicação dos lugares de fala, pela passagem do individual ao coletivo, do dentro ao fora, do eu ao muitos ou a outrem. Estamos próximos aqui do sentido que Nietzsche quer potencializar na dor - não o sentido interno e íntimo, consequência de um erro confinado numa interioridade voraz, mas o sentido externo, ativo, em que "a dor não é um argumento contra a vida, mas, ao contrário, um excitante da vida, 'uma isca para a vida', um argumento em seu favor". (Deleuze, G. Nietzsche e a Filosofia).

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Culpado pelo cérebro


Bom, a culpa tem uma bela e conhecida trajetória na história ocidental - da matriz judaico-cristã ao ideal ascético da metafísica, como nos ensina a melhor genealogia da culpa: "Esse homem que, por falta de inimigos e resistências exteriores, cerrado numa opressiva estreiteza e regularidade de costumes, impacientemente lacerou, perseguiu, corroeu, espicaçou, maltratou a si mesmo, esse animal que querem 'amansar', que se fere nas barras da própria jaula, este ser carente, consumido pela nostalgia do ermo, que a si mesmo teve de se converter em aventura, câmara de tortura, insegura e perigosa mata - esse tolo, esse prisioneiro presa da ânsia e do desespero tornou-se o inventor da 'má consciência'" (Nietzsche, A genelogia da moral).
Mais tarde, engrossam o caldo da má consciência todo um rol de saberes "psi", juntamente com todo um conjunto de práticas burguesas e institucionais. A culpa torna-se o afeto por excelência da subjetividade moderna.
Ao lado e cruzando a dimensão subjetiva e afetiva da culpabilidade, um outro percurso, de ordem jurídica e biológica, a inscreve não apenas nos atos e nos fatos, mas nos corpos dos indivíduos. Desde a antropologia criminal de Lombroso, que associava traços físicos e fisionômicos a almas criminosas, até os catálogos de dedos e orelhas de Bertillon (que faziam da medida antropométrica um instrumento de identificação criminal), passando pelo polígrafo (vulgo detector de mentiras) e laudos psiquiátricos, a aliança entre o jurídico, o tecnológico e o biológico não cessa de se sofisticar na busca de provas corporais da culpa.
A última novidade de que tomei conhecimento vem de recentes investimentos de um ramo das neurociências na busca por evidências cerebrais da culpa criminal. Os termos são assustadores e ressoam as mais distópicas ficções, mas vêm ganhando cada vez mais realidade nos últimos anos (vejam essa matéria). "Brain fingerprint" e "brain electrical oscillations signature" são algumas das técnicas que buscam ler ou visualizar no cérebro provas de culpa, lembrando a mais reacionária frenologia. A "brain fingerprint" visa detectar, por exemplo, um tipo memória que apenas culpados teriam. Para mais detalhes desse gênero de pesquisa, vejam o artigo "Neurolaw".
Tais evidências cerebrais fazem parte de uma série de pesquisas com aplicações as mais diversas, da criminologia ao marketing (via neuromarketing), que supõem que o cérebro não mente, ou ainda, que ele detém mais conhecimento sobre o eu (suas inclinações, preferências, traços de personalidade, registros mnemônicos) do que o seu portador. Esta perspectiva aposta no declínio da subjetividade psicológica, narrativa e hermenêutica, cuja "verdade" implica colocar a si mesmo em discurso e se oferecer a uma cadeia de interpretações que passa pelo outro (o terapeuta, o psicanalista), mas cujo sentido implica necessariamente a enunciação de si e a linguagem. Sim, a culpa moderna encontrou aí (nessa subjetividade interiorizada e hermenêutica) uma sede privilegiada, mas esta subjetividade não se esgotou no circuito da culpabilidade e produziu sentidos, modos de vida que abriram brechas no modelo confessional e na má consciência, sobretudo a partir dos anos 1960.
O espantoso nessa nova técnica de culpabilidade cerebral é que, ao confiscar a linguagem, ela aliena o sujeito tanto de si mesmo quanto do processo que decide a sua vida, tornando-o impotente frente à evidência cerebral cujo saber reside inteiramente no outro.

Você está aqui

Mais uma entre milhares de matérias que circulam na rede hoje sobre as boas novas da geolocalização e suas ferramentas que "revolucionarão" os negócios, as buscas, as redes sociais, os usos da Internet. Na matéria do Link/Estadão, cujo título (duvidoso) é "Você vai querer que todo mundo saiba onde você está" são ressaltadas as vantagens e praticidades dos novos serviços de geolocalização que acompanharão os mecanismos de busca, as redes sociais etc. Se tais serviços se popularizam, a já imensa massa de dados de usuários que circula no ciberespaço ganhará essa camada de geolocalização, com implicações importantes para os mapas e taxonomias dos usuários das redes e mídias digitais contemporâneas. Que esses dados não fiquem confinados às estratégias do marketing, da vigilância e do pragmatismo tecnológico e ganhem a inventividade das ruas, em proveito de cartografias alternativas. Felizmente, isso já acontece; e o que hoje ainda está prioritariamente no circuito da arte e do ativismo pode, assim esperamos, se espalhar em proporções cotidianas.

Facebook, privacidade e controle


Este artigo do The Guardian complementa parte do meu último post sobre a questão da privacidade. Mostra como o que está em jogo não é o fim da privacidade, mas, digamos, a sua modulação, isto é, a margem de controle que os usuários têm sobre seus dados pessoais e sobre os conteúdos que geram. Segundo a matéria, ainda que o tiro possa ter saído pela culatra, esta teria sido a intenção do Facebook, permitir que o usuário controle e module a sua privacidade, escolhendo para quem deseja mostrar o quê. Interessante também a "tendência", apontada pela matéria, de mudança de plataforma da rede social, onde o site tende a importar cada vez menos, enquanto o stream do usuário (a partir de múltiplos ambientes e aplicativos) se torna o novo foco da rede.