segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Cartografia das controvérsias: notas (2)

O público fantasma é uma legião de "públicos" a reinventar.
Na segunda ou terceira aula do curso, Latour relança a já bastante conhecida provocação da falência ou a inexistência do Público. Em suas palavras: "o Público é um fantasma". A frase retoma Walter Lippman e seu livro O público fantasma (Le public fantôme), cuja mais recente edição francesa é apresentada por Latour. A provocação de retomar as idéias de um pensador liberal e um enunciado tão propalado pelas "direitas" pretende recolocar e mesmo fortalecer a questão da possibilidade da democracia segundo uma perspectiva que é a um só tempo pragmática, sociotécnica, controversa. Afirmar o caráter fantasmático do Público não é nem um ato de descrença na democracia, nem uma negação da ação pública tout court; ao contrário, é um ato de fé na democracia, a qual depende, para os autores (Lippman e Latour), do reconhecimento de que o Público não é a solução das questões democráticas, mas sim um de seus problemas (ver também Dewey, J. The public and its problems). Logo, não se deve partir da existência do público como uma realidade de fato, mas sim como um problema a ser enfrentado. Pois o Público com P maíusculo é um fantasma, uma invenção das teorias idealistas da democracia, assim como as diversas formas de "Todo" que lhes são associadas - a "vontade geral", o "espírito público", até mesmo "a sociedade". Sobre estes fantasmas que se armaram os ideais fracassados da democracia, os quais foram lidos também como fracasso do Público (apatia, falta de vontade política, esmaecimento das lutas coletivas, escasso engajamento e cuidado com a "coisa" pública etc). Se houve fracasso, é porque não existe tal Público, mas muitos e diversos "públicos", e estes não estão aí prontos, mas precisam ser constituídos, potencializados, capacitados. 
Para tanto, eis a dimensão sociotécnica e pragmática, é preciso criar tecnologias, aparatos cognitivos que capacitem e constituam tais públicos. Os públicos, no sentido específico e pragmático são uma questão de medium. Se a imprensa pôde ser uma dessas tecnologias, cabe recolocar a questão - que tecnologia podemos inventar para a democracia hoje?
Como tal perspectiva se articula ao projeto de cartografia das controvérsias? Primeiro, pela idéia de que são nos momentos de crise, de incerteza, de controvérsias que o público é (ou deve ser) constituído e chamado a participar no debate, apreender os problemas que estão em jogo e tomar decisões. Ou seja, a possibilidade de ação do público e da democracia está atrelada a um mundo entendido como controverso, múltiplo, incerto. Segundo, a incerteza e a complexidade do mundo e de questões públicas e políticas só podem ser matéria de discussão e deliberação pública se os cidadãos, "naturalmente" desprovidos de recursos cognitivos, forem capacitados e aparelhados para tanto. Cartografar controvérsias é um passo em direção a esta construção de tecnologias voltadas para a potencialização do debate público e político, de tecnologias para a democracia. Tais tecnologias não são representativas de uma "vontade geral", mas instrumentos do "fazer comum" (faire ensemble). Por meio do "mapa" de uma controvérsia, os cidadãos podem visualizar posições, ações e consequências de ações sobre uma matéria específica e, por sua vez, agir "publicamente" e politicamente.
Ao longo da aula, pensei nos inúmeros dispositivos que têm sido criados ou apropriados na web (twitter , plataformas de compartilhamentos diversas, cartografias e sitemas de visualização de dados e processos socio-culturais e políticos, certas redes sociais) e que de alguma forma podem ser lidos como tendo um parentesco com essas tecnologias de ação pública ou de públicos específicos e momentâneos. Uma pista interessante para pensar a ação pública e política nesses contextos, e também a passagem (que venho explorando em diversos níveis) do privado ao público, do indivíduo ao coletivo, do eu ao nós. A advertência de que, assim como o eu, o nós não existe e está por vir, é, embora aparentemente óbvia, decisiva.
Ainda sobre a web, como apontei no último post sobre este mesmo curso, ela é uma importante aliada do projeto de cartografia das controvérsias, tanto porque é um "reservatório" de ferramentas potenciais para cartografar controvérsias, quanto porque é um potente "suporte" para a disponibilização das cartografias (veja alguns exemplos neste site).

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

No princípio, a ação (Terceira carta de Cogitamus, Bruno Latour)

"Au début, c'était l'action" (No princípio, era a ação). Eis o ponto de partida para o entendimento das técnicas e tecnologias. No início, a ação; depois a técnica. E quando estas se tornam transparentes, invisíveis e naturalizadas, cabe retraçar o curso de ação que as constituem. No caso das ciências, o antigo dito de João - "no princípio, era o verbo" - é retomado, mas num sentido todo próprio. Melhor seria dizer "discurso", "enunciado", em torno do que Latour propõe um novo exercício aos seus "alunos". Partir de um enunciado "flutuante", capturado um pouco ao acaso e em qualquer parte -  televisão, jornal, livro, blog - e tentar recondzi-lo às suas condições de produção. O exercício visa "ancorar" o enunciado ao mundo onde ele se produz, mundo de interlocuções humanas, mas também mundo de agentes não humanos, dos quais tratam muitas vezes os enunciados científicos sem lhes dar o devido crédito. Além disso, o exercício visa mostrar o quanto e como a ciência é construída por controvérsias.
Latour introduz mais uma  noção central - a de "controvérsia" - que vem, ao lado de "tradução" e "prova", formar a tríade conceitual do seu curso. Habitamos um mundo controverso e a ciência é ela mesma controversa. Cartografar as controvérsias é uma das tarefas do programa de humanidades científicas, permitindo visualisar e apreender uma série de movimentos e estados intermediários entre a dúvida radical e a certeza indiscutível. No lugar de uma ciência das extremidades, onde se encontram enunciados certos e estáveis, uma ciência de estados intermediários cuja cartografia permite mostrar que um enunciado científico, certo e estável, é a etapa final de uma série de controvérsias e não seu começo. E todo interesse desta cartografia consiste em compreender e perseguir os movimentos (controversos) através dos quais certos enunciados se tornam estáveis e certos, e outros não.
Latour retoma à sua maneira o embate (já empreendido de outros modos por diferentes autores, como Nietzsche, Foucault e outros) contra as tradicionais divisões segundo as quais a ciência e a razão ocidental se conceberam: entre enunciados falsos e verdadeiros a diferença não é de natureza, mas de grau (para retomar aqui a usada fórmula bergsoniana). "As diferenças de natureza entre os enunciados 'falsos' e os enunciados 'verdadeiros', os rumores e as descobertas, os argumentos discutíveis e os fatos indiscutíveis correspondem a etapas sucessivas na série de transformações que um enunciado deve sofrer para esgueirar-se entre os 'prós' e os 'contra'". Vemos logo ressoar outro antigo embate entre a retórica e a demostração, o qual Latour propõe retomar não segundo a lógica da oposição, mas segundo dois ramos da eloquência, por meio dos quais (e através de uma série de engenhosidades, astúcias e montagens) uma evidência ou um enunciado indiscutível se produz, na saída de uma cadeia de elementos nada evidentes e de uma série de discussões e controvérsias. Retraçar essa série e essa cadeia ruidosa porém usualmente deixada na invisibilidade ou no silêncio de caixas pretas  é compreender a elaboração progressiva de provas e a busca tateante pela verdade, em vez de supor um conflito entre as forças do verdadeiro e as forças das paixões e dos preconceitos.
Um tal (outro) amor pelas ciências retoma seus vínculos com a política. Entre o cogito - eu penso - e o cogitamus* - nós pensamos - é preciso escolher.
*O termo "cogitamus", que dá título ao livro, não é apenas uma espécie de contra-referência a Descartes, mas também uma alusão à noção de "Denkkollectiv" (coletivo de pensamento) formulada por Ludwik Fleck (Genèse et développement d'un fait scientifique, 1935), considerado o inventor da sociologia das ciências.