quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

No princípio, a ação (Terceira carta de Cogitamus, Bruno Latour)

"Au début, c'était l'action" (No princípio, era a ação). Eis o ponto de partida para o entendimento das técnicas e tecnologias. No início, a ação; depois a técnica. E quando estas se tornam transparentes, invisíveis e naturalizadas, cabe retraçar o curso de ação que as constituem. No caso das ciências, o antigo dito de João - "no princípio, era o verbo" - é retomado, mas num sentido todo próprio. Melhor seria dizer "discurso", "enunciado", em torno do que Latour propõe um novo exercício aos seus "alunos". Partir de um enunciado "flutuante", capturado um pouco ao acaso e em qualquer parte -  televisão, jornal, livro, blog - e tentar recondzi-lo às suas condições de produção. O exercício visa "ancorar" o enunciado ao mundo onde ele se produz, mundo de interlocuções humanas, mas também mundo de agentes não humanos, dos quais tratam muitas vezes os enunciados científicos sem lhes dar o devido crédito. Além disso, o exercício visa mostrar o quanto e como a ciência é construída por controvérsias.
Latour introduz mais uma  noção central - a de "controvérsia" - que vem, ao lado de "tradução" e "prova", formar a tríade conceitual do seu curso. Habitamos um mundo controverso e a ciência é ela mesma controversa. Cartografar as controvérsias é uma das tarefas do programa de humanidades científicas, permitindo visualisar e apreender uma série de movimentos e estados intermediários entre a dúvida radical e a certeza indiscutível. No lugar de uma ciência das extremidades, onde se encontram enunciados certos e estáveis, uma ciência de estados intermediários cuja cartografia permite mostrar que um enunciado científico, certo e estável, é a etapa final de uma série de controvérsias e não seu começo. E todo interesse desta cartografia consiste em compreender e perseguir os movimentos (controversos) através dos quais certos enunciados se tornam estáveis e certos, e outros não.
Latour retoma à sua maneira o embate (já empreendido de outros modos por diferentes autores, como Nietzsche, Foucault e outros) contra as tradicionais divisões segundo as quais a ciência e a razão ocidental se conceberam: entre enunciados falsos e verdadeiros a diferença não é de natureza, mas de grau (para retomar aqui a usada fórmula bergsoniana). "As diferenças de natureza entre os enunciados 'falsos' e os enunciados 'verdadeiros', os rumores e as descobertas, os argumentos discutíveis e os fatos indiscutíveis correspondem a etapas sucessivas na série de transformações que um enunciado deve sofrer para esgueirar-se entre os 'prós' e os 'contra'". Vemos logo ressoar outro antigo embate entre a retórica e a demostração, o qual Latour propõe retomar não segundo a lógica da oposição, mas segundo dois ramos da eloquência, por meio dos quais (e através de uma série de engenhosidades, astúcias e montagens) uma evidência ou um enunciado indiscutível se produz, na saída de uma cadeia de elementos nada evidentes e de uma série de discussões e controvérsias. Retraçar essa série e essa cadeia ruidosa porém usualmente deixada na invisibilidade ou no silêncio de caixas pretas  é compreender a elaboração progressiva de provas e a busca tateante pela verdade, em vez de supor um conflito entre as forças do verdadeiro e as forças das paixões e dos preconceitos.
Um tal (outro) amor pelas ciências retoma seus vínculos com a política. Entre o cogito - eu penso - e o cogitamus* - nós pensamos - é preciso escolher.
*O termo "cogitamus", que dá título ao livro, não é apenas uma espécie de contra-referência a Descartes, mas também uma alusão à noção de "Denkkollectiv" (coletivo de pensamento) formulada por Ludwik Fleck (Genèse et développement d'un fait scientifique, 1935), considerado o inventor da sociologia das ciências.

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