domingo, 30 de janeiro de 2011

Políticas e indústrias da (in)segurança na França: video-vigilância

Políticas e retóricas securitárias são efetivamente centrais na lógica dos governos contemporâneos, especialmente os europeus e norte-americanos. Sarkozy, na França, é um dos representantes mais eloquentes desta lógica, o que é claramente presente na agenda midiática e no cotidiano da cidade de Paris, em que são regulares, ao menos há seis meses (tempo que estou aqui), fechamentos de estações de metrô e monumentos de visitação pública sob ameaça ou suspeita de atentados terroristas. Além do fantasma do terrorismo, as políticas securitárias francesas são também claramente orientadas a populações imigrantes indesejáveis, associadas a uma periculosidade social e a uma delinquência potencial que seria preciso de algum modo combater ou conter. Atravessando tacitamente todo esse discurso "de superfície", há profusas e íntimas alianças entre o fluxo de investimentos financeiros-capitalísticos e a indústria da (in)segurança (conforme grafia proposta por Didier Bigo). O plano de vídeo-vigilância para a cidade de Paris é um dos produtos recentes dessa aliança.

O plano de vídeo-proteção, como é usualmente chamado na língua administrativa, prevê a instalação de 1000 ou 1302 câmeras (há controvérsias) na capital até 2012. É possível ver a lista dos locais de instalação das câmeras nesta matéria ou neste mapa publicado pela Owni, facilitando a visualização da geolocalização das câmeras e do seu "espectro" de monitoramento a partir do Google Street View. Um outro mapa também foi disponibilizado pela megalopolismag.com. Os argumentos são os mesmos, recorrentes na Europa e América do Norte: combate ao terrorismo, proteção da população a parir dos efeitos dissuasivo e preventivo das câmeras, produção de evidências para solução de crimes e delinquências. Enquanto a produção de provas post facto é, do ponto de vista da eficiência do dispositivo, um argumento supostamente plausível, segundo pesquisas, nada menos evidente que a proteção da população e o combate ao terrorismo sejam efetivamente facilitados pela vídeo-vgilância dos espaços públicos. Remanejamentos orçamentários, contudo, parecem ser uma das motivações não explícitas da empreitada, conforme esta matéria. Assim como os saldos positivos da indústria da (in)segurança, como mostra este artigo sobre a alta rentabilidade do mercado da vídeo-vigilância na França, dede os anos 1990.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Multiversos e cosmogramas (Quarta Carta de Cogitamus, Bruno Latour)

Um outro cosmos: multiversos, cosmogramas. São dessas outras "cosmologias" que trato brevemente nessa nota sobre a quarta carta do livro Cogitamus, de Bruno Latour. O ponto de partida é o belo livro de A. Koyré, Do mundo fechado ao universo infinito, o qual coincidentemente foi determinante na formação do meu entendimento da modernidade, ainda na graduação de uma psicologia fortemente afinada à epistemologia. Entendimento que, diz Latour, deve hoje ser revisto por pelo menos duas razões. Primeiro, porque essa passagem - do mundo fechado de Aristóteles e dos medievais ao universo infinito da ciência moderna de Galileu e Laplace - jamais se deu efetivamente. Ela é aquilo mesmo que caracteriza a narrativa moderna como ruptura com um passado primitivo e equivocado em direção a um futuro em posse da verdade e, no mínimo, promissor. Na sua contra-história da modernidade e da filosofia da ciência, Latour afirma que simplesmente passamos de um cosmo a outro, com a diferença de que este se acreditava um universo. Esta crença, contudo, não a temos mais. Eis a segunda razão da revisão do entendimento suposto no livro de Koyré. O século XXI não mais tem a certeza de viver num universo infinito. As discussões sobre ecologia e mudanças climáticas, por exemplo, nos advertem que temos agora que negociar não apenas entre nós, humanos, mas também com os recursos finitos da natureza. Mas não retornarmos ao cosmos aristotótico. Habitamos multiversos (retomando o termo do W. James). Ou ainda, habitamos um outro cosmos, mas este deve ter o sentido que habitualmente lhes dão os antropólogos: o agenciamento de todos os seres que uma cultura particular mantém juntos nas formas de vida prática. Apreender este outro, nosso, cosmos implica reconstituir "cosmogramas" (J. Tresch), sempre traçados seguindo as diferentes partes envolvidas nas controvérsisas que o constitui. "Descrever associações de conveniência, de coexistência, de oposição e de exclusão entre seres humanos ou nào humanos cujas condições de existência são pouco a pouco explicitadas sob a prova das disputas...Traçar cosmogramas é se tornar sensível a essas listas de associações e duelos lógicos sem recorrer à distinção do racional e do irracional, do moderno e do arcaico, do sistemático e do "bricolé".
Essa sensibilização para modos de existência diversos e para a natureza heterogênea e controversa do que entendemos por "mundo", "cosmos" ou "universo" é especialmente provocativa para quem, como eu, tem uma formação em ciências humanas e em particular em psicologia. A acolhida desta perspectiva no campo reconhecidamente híbrido da comunicação é menos controversa, creio. Mas o que julgo mais interessante nestas belas idéias e imagens de multiversos e cosmogramas, é que elas permitem não apenas uma reflexão diferenciada das ciências humanas e sociais sobre a ciência e a tecnologia, mas também conexões pouco usuais entre o cosmos assim entendido e a política. Cosmopolíticas, como se verá em post próximo.

Ps: Lamento pela pelo caráter pouco didático deste post, que merecia explicações mais detalhadas para ser plenamente compreendido. Tomem-no como pistas e traços a serem percorridos e continuados.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Escola

Um das boas experiências deste período em Paris é poder acompanhar, através do meu filho de 07 anos, o cotidiano do que sempre foi meu ideal de escola: pública, laica e universal. Mas, assim como em todo o mundo, a escola também aqui amarga uma crise que já vem de longa data. Escapam-me, por falta de conhecimento, as muitas razões e os diversos estratos dessa crise. Aqui falo apenas de uma experência muito particular e desde um olhar talvez demasiadamente estrangeiro.
Um dos elementos desta tão falada crise da escola francesa é a sua dificuldade em lidar com a diversidade cultural, linguística e comportamental que hoje "perturba" o seu "programa" ao um só tempo pedagógico e civilizatório. Uma das melhores leituras desse processo é o filme "Entre os muros da escola", de Laurent Cantet. Uma escola que não cabe mais em seus muros disciplinares, os quais não delimitam como antes um "interior" progressivamente homogêneo em que todos devem seguir de modo relativamente uniforme a "marcha natural do espírito".
Uma das "saídas" para lidar com a diversidade de culturas hoje presente na escola francesa consiste em medidas que buscam "personalizar" ou "diferenciar" a escola segundo grupos de competências e necessidades específicas. Algumas escolas elementares oferecem, por exemplo, classes especiais para estrangeiros, as quais visam dar uma atenção especial a crianças qua não falam o francês. Assim que cheguei, ouvi diversas vezes essas propostas em tom elogioso, como se elas representassem um cuidado em atender às diferentes demandas dos estrangeiros. Vi com certa simpatia tais medidas, num primeiro momento, mas logo percebi a cilada que a "personalização" trazia consigo. O que parece ser uma afirmação e uma acolhida da diversidade mantém uma fronteira perigosa com a segregação. As classes especiais seriam uma forma de acolher a diversidade de culturas e línguas no seio da escola ou uma forma de "poupar" as crianças francesas e/ou francófonas do convívio ("perturbador") com esta diversidade? A fronteira é tênue e coloca em risco não apenas a dimensão republicana da escola quanto o seus objetivos pedagógicos. Essas medidas, que se alinham com o que tecnicamente se chama de "colégio diferenciado" e que se afina com as propostas dos "colégios de reinserção escolar" para os "adolescentes-problema" não apenas ampliam a segregação como implicam em resultados escolares desfavoráveis. Contra essa corrente, a afirmação e fortalecimento do chamado "colégio único", instaurado na França a partir de 1975, mais igualitário e com resultados escolares mais favoráveis, conforme pesquisa divulgada pela OCDE no bom artigo de Nathalie Mons no Le Monde. Contra a cilada da personalização, que diferencia sem implementar de fato uma política das diferenças, o colégio único se mostra bem mais interessante na tarefa de educar segundo perspectivas e contextos simultaneamente igualitários e heterogêneos.