quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Agentes Invisíveis e Spy Files

Precisamente na véspera do Festival de Cultura Digital, que acontece no MAM e no Odeon, de 02 a 04 de dezembro no Rio de Janeiro, o WikiLeaks divulga uma série de documentos (Spy Files) que revelam o imenso mercado de vigilância e interceptação de telecomunicações (internet, telefones celulares, gps, mensagens sms etc) que abastece tanto governos democráticos quanto ditaduras. Veja o mapa desse mercado e seus clientes, produzido pela OWNI em parceria com o WikiLeaks. O vazamento destes documentos, reunidos sob a rubrica Spy Files, vem ao encontro do nosso "Agentes Invisíveis", um projeto de pesquisa que consistiu em rastrear rastreadores na Internet brasileira, identificando as empresas que se dedicam ao monitoramento e ao comércio de dados gerados pelos usuários na rede. Esta pesquisa fez parte de um projeto mais amplo de cooperação entre o Brasil e o México, que consistiu em realizar um mapeamento preliminar do "estado da arte" da vigilância e do monitoramento de dados pessoais em três campos: videovigilância, documento de identificação civil e Internet. Em breve, publicaremos o relatório de toda a pesquisa. Digiri a parte do projeto voltada à Internet no Brasil e contei com a preciosa colaboração da doutoranda Liliane Nascimento (ECO/UFRJ), que dividiu comigo todo o trabalho da pesquisa, e dos bolsistas Rafael Lins e Anna Carolina Bentes, ambos da UFRJ. Estaremos apresentando a pesquisa no dia 02/11 na Mostra de Experiências do Festival de Cultura Digital. Abaixo, o slide da apresentação.



segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Café Tecnológico - Sesc Belenzinho


Participei, no dia 19/11/11 de uma mesa no "Café Tecnológico: Arte e Meios Tecnológicos" promovido pelo Sesc Belenzinho. Ocasião para voltar às reflexões sobre estéticas da vigilância, um tema que nunca ocupa plenamente o centro da minha pesquisa, mais por falta de competência do que de interesse. Um tema, contudo, sempre presente. Nesta fala, focalizei sobretudo as zonas de incerteza que habitamos frente ao olhar e a atenção vigilantes hoje. Se a estética disciplinar de vigilância institui uma zona de incerteza quanto à possibilidade de estar sendo visto ou não, a contemporânea institui uma zona de incerteza quanto ao sentido desse olhar e dessa atenção historicamente associados à vigilância. Sentido que transita entre o controle e a liberdade, a segurança e a ameaça, o policial e o libidinal, a suspeita e o cuidado, a inspeção e o entretenimento. Retomei dois trabalhos que operam com essa zona de incerteza, que diferentes modos, e  que já me são bastante familiares, uma vez que já foram objeto de textos ou falas anteriores: o vídeo Teoria da Paisagem do Roberto Bellini e o filme Imagens da Prisão do Harun Farocki. Sobre o primeiro vídeo, reproduzo trecho de um pequeno artigo escrito em parceria com Consuelo Lins, e recomendo o ótimo texto do Cezar Migliorin. Sobre o filme do Farocki, não me dedico a ele suficientemente em nenhum texto (salvo num futuro artigo no prelo), ainda que o apresente aqui e acolá em conferências. Em nossa língua portuguesa, uma boa coletânea sobre o trabalho do artista encontra-se no catálogo da mostra Harun Farocki: por uma politização do olhar, disponível para download.

" O diálogo entre o guarda e o artista revela um outro sentido ao ato de olhar e filmar, ausente na paisagem contemplativa e “inocente” que vemos na imagem, mas absolutamente presente no cotidiano das paisagens urbanas e midiáticas. A câmera e, por extensão, o olhar são capturados e reduzidos a um dispositivo de vigilância potencial. Sob suas perguntas e advertências notamos mais uma vez a dificuldade, mencionada anteriormente, em discernir vigias e vigiados. A abordagem do guarda é um sintoma de quanto a função estética da câmera de vídeo é capturada por uma função social, intimamente atrelada à vigilância.

O vídeo de Bellini opera e registra um duplo deslocamento: uma paisagem é deslocada de sua função contemplativa para uma função de controle social, mas esse deslocamento opera um segundo registro, expondo as tensões e os limites da política do olhar em nossa cultura. Encadeamento de vigilâncias curioso: o guarda que vigia um território atribui um sentido de vigilância ao ato de filmar uma paisagem, o que por sua vez acaba desencadeando um registro que é ao mesmo tempo um “documentário poético” e um documento de vigilância/controle." (Bruno, F. & Lins, C., Estéticas da Vigilância, 2006)

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Teoria Ator-Rede e Cibercultura

Tive o prazer de organizar duas mesas no último Simpósio da ABCiber, reunindo Lúcia Santaella, Erick Felinto, Theophilos Rifiotis, André Lemos e eu mesma, em torno do tema "Ator-Rede e Cibercultura". A idéia desta mesa tem origem em outras que a precederam, propostas por Theophilos Rifiotis, que iniciou o movimento, que nos contagiou, de provocar a cibercultura ao diálogo com a teoria ator-rede. Seguem abaixo os resumos das mesas, montadas em forma de diálogos, os quais infelizmente não foram publicados na programação do evento. Aqui fica nosso registro.

V SIMPÓSIO NACIONAL ABCIBER
16-18 de novembro de 2011  
Ator-Rede e Cibercultura: diálogos I
Fernanda Bruno (proponente/coordenadora)
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Erick Felinto
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Lucia Santaella
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Resumo
Esta mesa reúne pesquisadores brasileiros que vêm explorando a Teoria Ator-Rede (ANT) no âmbito da cibercultura, segundo perspectivas diversas. Primeira parte de uma proposta que envolve dois módulos - Ator-Rede e Cibercultura: diálogos I e II – a mesa se estrutura na forma de três diálogos, cujos temas centrais são: as noções de rede e de tradução na obra de Bruno Latour (Lúcia Santaella e André Lemos); as conexões entre o pensamento deste autor e as novas teorias de mídia alemã (Erick Felinto e Theophilos Rifiotis); e as implicações de uma ontologia política das redes (encaminhada pela ANT) para a cibercultura (Fernanda Bruno e Lúcia Santaella).
Abstract
This section gathers Brazilian researchers who have been exploring the Actor-Network theory within the scope of cyberculture, according to different perspectives.  It is the first part f a proposal that comprises two modules – Actor-Network Theory and Cyberculture I and II.  The section is organized in the form of a threefold dialogue, whose main topics are: the notions of network and translation in the work of Bruno Latour  (Lucia Santaella & André Lemos); the connections between Latour’s thought and the new German media theories (Erick Felinto & Theophilos Rifiotis); the implications of a political ontology of networks for cyberculture (Fernanda Bruno & Lucia Santaella).
Proposta da mesa
A Teoria Ator-Rede (ANT), que tem seu início nos anos 1980 a partir dos trabalhos de J. Law, M. Callon, B. Latour, entre outros, vem sendo apropriada de diversos modos pelas ciências humanas e sociais, especialmente por pesquisas em que a tecnologia e a ciência ocupam lugares centrais. Esta mesa propõe estender esta discussão ao campo da cibercultura, especialmente pertinente para a reflexão e a investigação de noções chave para a ANT, tais como rede, agência, mediação, tradução, coletivos. Na forma de diálogos ou interpelações entre pesquisadores brasileiros que vêm se dedicando a estes temas, a mesa se estrutura em dois módulos. Neste primeiro módulo – “Ator-Rede e Cibercultura: diálogos I” –  os diálogos focalizarão as noções de rede e de tradução na obra de Bruno Latour, as conexões entre o pensamento deste autor e as novas teorias de mídia alemã, e as implicações de uma ontologia política das redes para a cibercultura. A mesa será composta por três intervenções, conforme os títulos e resumos apresentados a seguir, sendo que cada intervenção será interpelada por outro pesquisador, membro desta mesa ou do segundo módulo desta proposta (Ator-Rede e Cibercultura: diálogos II).
Primeira Intervenção:
Noções-chave para entender as redes em Latour
Lucia Santaella (Interlocutor: André Lemos)
Bruno Latour extraiu o conceito de rede da obra Lê revê d´Alembert (1769) de Diderot, a qual inclui 27 exemplos da palavra “rede”. Lembrar essa origem é importante para não se confundir o conceito de rede da ANT (Actor-Network-Theory) com dois outros conceitos de rede que são comumente usados: de um lado, o conceito técnico de rede (eletricidade, trens, internet etc.), de outro lado, o conceito utilizado na sociologia das organizações para introduzir a diferença entre organizações, mercados, estados. Este artigo visa explicitar as divergências entre as noções comumente aceitas de rede e aquela utilizada por Latour. Esta implica conceitos-chave tais como sociologia das associações em oposição às sociologias do social, actante em oposição a ator e, sobretudo, em lugar de mero intermediário, o conceito especializado de mediador que só se faz entender à luz do significado específico que a palavra “tradução” recebe na ANT.
Segunda Intervenção:
O social não existe de muitas maneiras; o social está por fazer. Ressonâncias de uma ontologia política das redes para a cibercultura.
Fernanda Bruno (Interlocutora: Lucia Santaella)
Uma das afirmações mais contundentes da teoria ator-rede, especialmente reiterada por Bruno Latour, é a de que o social não existe. Muitas provocações estão contidas nesta frase, entre elas, a de que boa parte da sociologia teria se poupado do trabalho essencial de explicar como se constrói “o social”, transformando-o numa espécie de grande estrutura ou substância que tudo explica. O “social” não é o que explica, diz a teoria ator-rede, mas o que merece ser explicado. E explicar, neste caso, é também construir o próprio social, ou um mundo comum. Ou seja, trata-se de um “programa” a um só tempo cognitivo e político. Nesta intervenção, focalizarei um dos encaminhamentos que Bruno Latour dá a este “programa”, notadamente aquele que retoma uma intuição fundadora das ciências sociais e humanas: a de que não agimos sós e tampouco somos senhores do que fazemos. Latour radicaliza a sentença e formula o que proponho chamar de uma ontologia política performativa. Ressalto três aspectos essenciais desta ontologia: a natureza heterogênea dos seres que a compõem; o caráter distribuído da ação que a anima; o sentido político que a orienta. Estes três aspectos serão explorados num diálogo com autores como Simondon e Foucault, tendo em vista as suas implicações para a pesquisa no campo da cibercultura, com destaque para o problema dos traços e rastros digitais como matéria controversa de um social por fazer.
Terceira Intervenção:
“Bruno Latour mit deutscher Akzent”:  Convergências entre a Teoria Ator-Rede e as Novas Teorias de Mídia Alemães
Erick Felinto (Interlocutor: Theophilos Rifiotis)
A obra de Bruno Latour impactou de forma significativa nos mais diversos domínios do conhecimento, tanto nas ciências do homem como da natureza.  Todavia, não obstante a originalidade do pensamento latouriano, não se pode dizer que tenha se desenvolvido ex-nihilo ou que se estruture unicamente a partir de insights absolutamente inéditos.  Esse pensamento é em larga medida tributário de filósofos como Gilbert Simondon e Étienne Souriau e sociólogos como Gabriel Tarde.  Por outro lado, Latour encarna com perfeição certas tendências intelectuais que parecem caracterizar as feições emergentes de uma epistemologia tipicamente contemporânea, fascinada com os temas da agência, da materialidade dos objetos e da inter-relação entre sujeitos, aparatos e instituições.  O objetivo deste trabalho é tecer algumas conexões entre a obra do sociólogo francês e determinados princípios das novas teorias de mídia produzidas no contexto germânico.  Tal comparação irá se centrar nos (emblemáticos) percursos intelectuais de Vilém Flusser e Friedrich Kittler, pensadores em cujos escritos acreditamos ser possível encontrar interessantes ressonâncias com a démarche latouriana.  A noção de sociedade telemática, em Flusser, assim como o conceito kittleriano de Aufschreibeysteme (“sistemas de notação”) cumprirão o papel de bússola em uma investigação cujo sentido final é esboçar algumas das principais linhas de força de uma nova epistemologia adequada às exigências do presente.
Referências bibliográficas
Callon, Michel; Lascoumes, Pierre; Barthe, Yannick (2001). Agir dans un monde incertain. Essai sur la démocratie technique. Paris: Le Seuil.
Deleuze, Gilles (2006). “Un nouveau cartographe”, Foucault. Paris: Éditions de Minuit, p. 31-51.
Flusser, Vilém (2008). Kommunikologie weiter denken: Die Bochumer Vorlesungen. Frankfurt am Main: Fischer.
____________ (1995). Lob der Oberflächlichkeit: Für eine Phänomenologie der Medien. Mannheim: Bollman.
Foucault, Michel (1971). L’Ordre du discours. Leçon inaugurale du Collège de France. Paris: Gallimard.
Gumbrecht, Hans Ulrich (2004). The Production of Presence: what Meaning cannot convey. Stanford: Stanford University Press.
Kittler, Friedrich (1999). Gramophone, Film, Typewriter. Stanford: Stanford University Press.
______________(2000). Eine Kulturgeschichte der Kulturwissenschaft.  München: Wilhelm Fink.
Klook, Daniela & Spahr, Angela (1997). Medientheorien. Eine Einführung. Stuttgart: Uni-Taschenbücher S.
Krämer, Sybille (2008). Medium, Bote, Übertragung: Kleine Metaphysik der Medialität. Frankfurt: Suhrkamp.
Latour, Bruno. (1994). Jamais Fomos Modernos: Ensaios de Antropologia Simétrica. Rio de Janeiro: Editora 34.
Latour, Bruno (1998). On actor-network theory. A few clarifications. CSTT, Keely University, UK. Acesso 15/01/2010, em http://www.nettime.org/Lists-Archives/nettime-l-9801/msg00019.html
____________ (1991). On technical mediation. Philosophy, sociology, genealogy., in Common Knowledge, fall, V3. N2., disponível em http://www.bruno-latour.fr/articles/article/54-TECHNIQUES-GB.pdf
__________ (1999). A collective of humans and nonhumans. In Pandora´s hope. Cambridge: Harvard University Press.
__________ (2004). On recalling ANT. In Law, John, Actor network theory and after. London: Blackwell.
__________ (2005). Reassembling the social. An introduction to actor-network-theory. Oxford: Oxford University Press.
Lugano, Giuseppe (2008). Mobile social networking in theory and practice. First Monday, Vol. 13, n. 11. Acesso 12/01/2010, em http://firstmonday.org
Santaella, Lucia e Lemos, Renata (2010). Redes sociais digitais. A cognição conectiva do Twitter. São Paulo: Paulus.
Simondon, Gilbert (1989). L'individuation psychique et collective. Paris: Aubier.
___________ (1989). Du mode d'existence des objets techniques. Paris: Aubier.
Winthrop-Young, Geoffrey (2005). Friedrich
Ator-Rede e Cibercultura: diálogos II
Erick Felinto
Universidade Federal do Rio de Janeiro
André Lemos
Universidade Federal da Bahia
Theophilos Rifiotis
Universidade Federal de Santa Catarina 
Resumo
Esta mesa consiste no segundo módulo da proposta “Ator-Rede e Cibercultura: diálogos I e II”, que reúne pesquisadores brasileiros cujas pesquisas vêm explorando a Teoria Ator-Rede (ANT) no âmbito da cibercultura, segundo perspectivas diversas. Os temas discutidos estruturam-se na forma de dois diálogos.  O primeiro focaliza as noções de espaço e lugar a partir da ANT, tendo em vista práticas recentes no âmbito das tecnologias de informação e redes telemáticas (André Lemos e Erick Felinto). O segundo diálogo discute as implicações noção de agência para os estudos da “cibercultura” à luz da ANT, especialmente dos trabalho de Bruno Latour e de Marilyn Strathern sobre redes e agências (Theophilos Rifiotis e Fernanda Bruno). Os diálogos serão seguidos de amplo debate reunindo os participantes dos dois módulos da proposta.
Abstract
This section consists in the second module of the proposal “Actor-Network Theory and Cyberculture: Dialogues I & II”, which gathers Brazilian researchers whose work explores the Actor-Network Theory (ANT) in the context of cyberculture according to different perspectives.  The topics are to be discussed in the form of two dialogues.  The first focuses on the notions of space and place in ANT, considering recent practices within the scope of information technologies and telematic networks (André Lemos & Erick Felinto).  The second dialogue discusses the implications of the notion of agency for “cyberculture” studies in the light of ANT, especially in the work of Bruno Latour and Marilyn Strathern on networks and agencies (Theophilos Rifiotis & Fernanda Bruno). The dialogues will be followed by a debate joining the participants of the two modules of the proposal.
Proposta da mesa
A Teoria Ator-Rede (ANT), que tem seu início nos anos 1980 a partir dos trabalhos de J. Law, M. Callon, B. Latour, entre outros, vem sendo apropriada de diversos modos pelas ciências humanas e sociais, especialmente por pesquisas em que a tecnologia e a ciência ocupam lugares centrais. Esta mesa propõe estender esta discussão ao campo da cibercultura, especialmente pertinente para a reflexão e a investigação de noções chave para a ANT, tais como rede, agência, mediação, tradução, coletivos. Na forma de diálogos ou interpelações entre pesquisadores brasileiros que vêm se dedicando a estes temas, a mesa se estrutura em dois módulos. Neste segundo módulo – “Ator-Rede e Cibercultura: diálogos II” –  os diálogos discutirão as noções de espaço, lugar, agência e redes a partir da ANT, tendo em vista práticas recentes no âmbito das tecnologias de informação e redes telemáticas, bem como os estudos da “cibercultura”. A mesa será composta por duas intervenções, conforme os títulos e resumos apresentados a seguir, sendo que cada intervenção será interpelada por outro pesquisador, membro desta mesa ou do primeiro módulo desta proposta (Ator-Rede e Cibercultura: diálogos I). Os diálogos serão seguidos de um debate de encerramento da mesa, reunindo os participantes dos dois módulos.
Primeira Intervenção:
Espaço, Lugar e ANT
André Lemos (Interlocutor: Erick Felinto)
A ANT nos permite ver como os lugares se constituem por redes de atores que conectam sempre outros “sites” e temporalidades. Para Latour (2005) há sempre uma relação entre localização e contexto a partir de “articulators” ou “localizers”. Aqui, mais uma vez, o lugar não é independente do contexto, nem um mero refém deste. Há um vai-e-vem entre diversos mediadores que conectam “sites” e temporalidades fazendo do lugar o resultado de um atravessamento de fluxos. Para Latour nenhuma relação associativa em um determinado lugar é: “isotopic” (o que age em um lugar vem de muitos outros lugares), “synchoric” (reúne actantes gerados em diversas temporalidades), “synoptic” (não é possível ter uma visão do todo), “homogeneous” (as relações não têm as mesmas qualidades) ou “isobaric” (relações e pressões diferenciadas em cada lugar onde intermediários transformam-se em mediadores e vice-versa) (LATOUR, 2005, pp. 200, 201). Não se trata de globalizar o lugar nem de localizar o global, mas de pensar em uma “redistribuição” do local e do global. Essa nova cartografia tem assim um papel de reconstrução da memória social, de engajamento espacial, de produção de sentido local, de reforço de vínculo identitário, e de produção de uma política da cidade. As tecnologias de informação e as redes telemáticas têm criado possibilidade de rastrear os dados sociais para diversos fins, inclusive de controle e vigilância. Essas tecnologias fornecem dados finos das associações, das variações, das adaptações e das redes sociais que nenhuma estatística jamais pode oferecer (traços de navegações em tempo real, mapeamentos e articulações com escrita nos lugares, marcas das leituras feitas nesse deslocamento…rastros de uma mobilidade que se inscreve e se lê, revelando associações). Contrariamente, os rastros digitais, para o melhor ou o pior (vigilância), revelam as caóticas navegações e as fluidas associações pelo vivido (o lugar).
Segunda Intervenção:
Redes, Agências e Fluxos
Theophilos Rifiotis (Interlocutor: Fernanda Bruno) 
Trata-se de uma apresentação das implicações da noção de agência centrada na ANT tal como a trabalha Bruno Latour, articulando-se com as considerações de Marilyn Strathern sobre redes e agências, para os estudos da chamada “cibercultura”.  Partimos da crítica da estética da objetividade moderna (purificação e tradução), entendendo que a noção de redes sociotécnicas tem um valor epistemológico para a superação das dicotomias clássicas (sujeito/objeto, social/técnica, natureza/cultura, ciência/sociedade).  A sua importância nos estudos da chamada “cibercultura” é ainda pouco explorada e tem vínculos com a própria idéia latouriana do encolhimento do sentido de “social” para abrigar exclusivamente a ação humana (consciência, intencionalidade, volição).  Em grandes linhas, propomos uma sistematização deste debate desenvolvendo a noção de híbrido, rede e agência.
Em primeiro lugar procuramos colocar em perspectiva a nossa vontade de saber sócio-técnico, procurando debater os limites e alternativas analíticas da ANT para a superação de dicotomias como social/técnica e humano/não-humano.  Desenvolvemos a idéia de que a rede não é um contexto a ser descrito e no qual se desenvolve a ação.  Ela é o que deve ser explicado e não a explicação na “cibercultura”.  Em termos da ANT, existimos no interior (contexto) e ao mesmo tempo fazemos parte de redes (mediador).  Redes são fluxos, processos incessantemente produzidos.  Assim, descrever uma rede implica em rastrear associações entre entidades (humanas e/ou não-humanos), destacar agências, identificar coletivos, sinteticamente, mapear fluxos: pontos de inflexão, deslocamentos e controvérsias (M. Strathern).
Por último, discutimos a noção de agency, agência.  Lembrando que não se trata de uma determinação, nem questão de escolha.  A questão da agência na perspectiva de B. Latour pode ser resumida na pergunta: como um elemento incide no curso da ação?  Ou, o que faz fazer num contexto relacional ? 
Concluímos no sentido de que o foco das pesquisas, na perspectiva sociotécnica, tem foco nos agenciamentos, quer dizer: descrever como algo/alguém faz algo/alguém fazer (actantes), mostrar a ação e os rastros da mediação (evento), construção de coletivos de actantes.
Debate Final:
Participantes dos módulos Ator-Rede e Cibercultura: diálogos I e II (Fernanda Bruno, Erick Felinto, Theophilos Rifiotis, Lucia Santaella, André Lemos)
O debate final visa pontuar e retomar as principais questões debatidas nos dois módulos, de modo a traçar uma primeiro mapa de problemas relativos às implicações da ANT para a pesquisa no campo da cibercultura. 
Referências bibliográficas
FLUSSER, Vilém (2008). Kommunikologie weiter denken: Die Bochumer Vorlesungen. Frankfurt am Main: Fischer.
____________ (1995). Lob der Oberflächlichkeit: Für eine Phänomenologie der Medien. Mannheim: Bollman. 
GUMBRECHT, Hans Ulrich (2004). The Production of Presence: what Meaning cannot convey. Stanford: Stanford University Press. 
HARAWAY, Donna. “Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX.  IN: HARAWAY, D.; KUNZRU, H.; SILVA, T.T. (org.)  Antropologia do ciborgue. As vertigens do pós-humano. Belo Horizonte, Autêntica, 2000, pp. 39-129. 
KITTLER, Friedrich (1999). Gramophone, Film, Typewriter. Stanford: Stanford University Press. ______________(2000). Eine Kulturgeschichte der Kulturwissenschaft.  München: Wilhelm Fink. KLOOK, Daniela & Spahr, Angela (1997). Medientheorien. Eine Einführung. Stuttgart: Uni-Taschenbücher S. 
KRÄMER, Sybille (2008). Medium, Bote, Übertragung: Kleine Metaphysik der Medialität. Frankfurt: Suhrkamp. 
LATOUR, Bruno. (1994). Jamais Fomos Modernos: Ensaios de Antropologia Simétrica. Rio de Janeiro: Editora 34. 
____________ (1991). On technical mediation. Philosophy, sociology, genealogy., in Common Knowledge, fall, V3. N2., disponível em http://www.bruno-latour.fr/articles/article/54-TECHNIQUES-GB.pdf 
____________ (2004). « Le rappel de la modernité. Approches anthropologiques ». Etnographiques. n. 6, (on-line). 
____________ (2001). A Esperança de Pandora.  Bauru, EDUSC. 
___________ (2005). Reassembling the Social. Introduction to Actor-Network Theory. Oxford, 2005. LATOUR, B., VENN, C. (2002). Morality and Technology: The End of the Means., in Theory, Culture & Society; 19; 247., disponível em http://www.bruno-latour.fr/articles/article/080-en.html LEMOS, A. (2010). Você está aqui! Mídia Locativa e teorias “Materialidades da Comunicação” e “Ator-Rede”. Revista Comunicação e Sociedade, São Bernardo do Campo, – SP – Metodista, Ano 32 – Número 54, jul./dez. 2010., ISSN – 0101-2657, pp. 5-29., Disponível em https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/CSO/article/view/2221/2309 
_________ (2011). Ciborgues, cartografias e cidades. Algumas reflexões sobre teoria ator-rede e ciberculura. Aprovado para publicação em 2011 na revista Revista de Comunicação e Linguagens, Lisboa, CECL. 
_________ (2011)Things (and People) are the Tools of the Revolution., in poliTICs , n. 9, Instituto Nupef., abril de 2011. Versão eletrônica. http://www.politics.org.br/?q=node/86 
STRATHERN, Marilyn. “Cutting the Network”. Journal of the Royal Anthropological Institute 2 (3): 517-535, 1996. (on-line) 
STRATHERN, Marilyn.  O Gênero da dádiva. Problemas com as mulheres e problemas com a sociedade na Melanésia. Campinas, Editora Unicamp, 2006. 
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “O conceito de sociedade em Antropologia”. In:  A inconstância da alma selvagem. São Paulo, Cosac & Naify, 2002, p. 295-316. 
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “O nativo relativo”. Rio de Janeiro, Mana, v. 8, n. 1, 2002, p. 113-148. (on-line)
WINTHROP-YOUNG, Geoffrey (2005). Friedrich Kittler: zur Einführung. Hamburg: Junius.

segunda-feira, 28 de março de 2011

Dados Pessoais.BR: questão de última hora.

O Ministério da Justiça do Brasil lançou para debate público, desde 2010, o anteprojeto de lei sobre  proteção de dados pessoais e privacidade. A consulta pública dura até 31 de março de 2011 e pode ser acompanhada e dabatida no site do projeto. Este post é uma tentativa de contribuição e reflexão de última hora, ainda que aponte, por falta de competência jurídica no assunto, mais problemas e dúvidas do que soluções. Vou me concentrar em um ponto - a relação entre dado pessoal e identificação - focalizando a circulação e o tratamento de dados pessoais na Internet.
Dado pessoal e identificação: definição e limites
Definir o que é dado pessoal hoje, sobretudo no âmbito da Internet, é um dos grandes problemas para qualquer tentativa de regulação, uma vez que não se trata de um "atributo" estável, mas um termo controverso, em constante redefinição e disputa por diferentes atores econômicos, jurídicos, tecnológicos etc. No contexto da comunicação digital na Internet, essa disputa é ainda mais acirrada e acelerada, onde concorrem uma série de práticas e ações cotdianas, de natureza mais ou menos distribuída, que a todo momento colocam em jogo seja uma nova forma de produção e circulação de dados pessoais, seja um novo meio de monitoramento, tratamento, captura ou utilização desses dados. Além disso, no contexto da chamada web 2.0, em que uma dimensão expressiva dos dados é produzida pelos seus usuários, as fronteiras que delimitam o que é um dado pessoal se tornam bastante difíceis de demarcar. Dentre as inúmeras questões a serem exploradas aí, destaco o vínculo entre dado pessoal e identificação, proposto neste e em inúmeros outros projetos de lei similares mundo afora.
O nosso ante-projeto de lei define dado pessoal como: "qualquer informação relativa a uma pessoa identificada ou identificável, direta ou indiretamente, incluindo todo endereço ou número de identificação de um terminal utilizado para conexão a uma rede de computadores".
Vincular a definição de dado pessoal à possibilidade de identificação me parece ao mesmo tempo fundamental e problemático, se considerarmos o monitoramento e as apropriações correntes de dados pessoais na Internet. Fundamental porque é absolutamente necessário assegurar o direito à proteção de dados pessoais no sentido de permitir ao indivíduo não ser identificado ou identificável. Problemático porque: a) no âmbito das redes de comunicação digital, especialmente a Internet, as possibilidades de rastreamento que podem levar à identificação dos indivíduos são inúmeras, tornando difícil demarcar o que seria uma informação efetivamente anônima e uma informação que possa levar à identificação de indivíduos. O termo "identificável", assim como a especificação "direta ou indiretamente" mostram uma atenção, no texto do projeto, para esta dificuldade, mas não estou certa de que ela está contornada. Um segundo problema do vínculo entre dado pessoal e identificação consiste b) nas possibilidades de uso de dados pessoais que impliquem categorização e triagem não dos indivíduos que os geraram (o que estaria atrelado à identificação), mas de indivíduos que se enquadrem em perfis gerados por dados pessoais anonimizados. Sabe-se que uma imensa parcela do tratamento e uso de dados pessoais coletados de forma automatizada na Internet constituem bancos de dados que são anonimizados e agregados, submetidos a técnicas de "profiling" para categorizar e agir sobre o campo de escolhas, decisões e ações de indivíduos ou grupos específicos. Dados transacionais e comportamentais de usuários, por exemplo, são coletados, anonimizados e tratados de modo orientar ofertas diferenciadas de produtos, concessão ou veto de acesso a serviços, investimentos diferenciados sobre grupos ou indivíduos classificados segundo poder de compra, interesses, preferências políticas, padrões comportamentais etc. A questão é: devem ter os indivíduos o direito de escolher se desejam ou não que seus dados pessoais sejam coletados, ainda que sejam em seguida anonimizados, a depender do tipo de utilização declarado? 
Não ficou claro para mim se esta opção está explicitamente prevista em algum dos artigos do anteprojeto de lei ou se este entende que o problema que escapa a tal regulação, uma vez que os dados deixam de ser considerados pessoais quando são anonimizados. Se sim, retorna o problema da identificação como marco central da definição de dado pessoal. Se considerarmos que uma política de dados pessoais deva implicar também o controle dos indivíduos sobre as informações que ele gera, caberia o direito de negar a coleta automatizada dos seus dados por sites e corporações cujos propósitos não lhe pareçam interessantes ou desejáveis (sei que isto está previsto no ante-projeto, mas não entendi se está previsto mesmo quando os dados são anonimizados).

No pano de fundo desta questão há a hipótese, ainda em exploração, de que boa parte do controle de dados pessoais hoje se dá em estratos aquém ou além dos procedimentos 'clássico-modernos' de identificação, atuando em níveis infra e supra individual. Claro que, curiosamente, essa modalidade de  controle convive com uma sofisticação de dispositivos de identificação baseados no monitoramento e no tratamento de dados pessoais, o que justifica a importância de regulações que 'respondam' à complexidade da dinâmica de produção, circulação e controle de dados em nossas sociedades.

quinta-feira, 17 de março de 2011

O Japão é o mundo: natureza, tecnologia e política

Um post às pressas. O terrível desastre natural no Japão - terremoto e tsnunami - traz consigo dois  desastres adicionais, um técnico, outro político. Natureza, tecnologia e política, três termos que modernamente mantemos em domínios apartados mostram-se, em seus desastres, panes, excessos, extremamente imbricados. O desastre natural, ainda que excessivo e de certa forma surpreendente, já não habita mais o reino do que transcende à ação humana, mas do que nos lembra da rede complexa de interconexões entre nossas ações locais e algo tão global como "a natureza". Mas a presença de usinas nucleares em territórios de risco, como o Japão, representa uma outra concepção de relação entre natureza e tecnologia, onde se supõe que esta pode dominar, domar ou ao menos "resistir" às intempéries da natureza. Outro mito moderno da técnica que desaba tragicamente, e ainda uma vez, em solo japonês. O desastre político consiste precisamente na tentativa de compreender ou contornar o problema mantendo apartados esses processos extremamente encadeados, supondo que a questão é, ou de ordem tecnocientífica, ou de ordem natural, ou de ordem política, mal-entendendo esta última como a ordem dos interesses que vêm 'manipular' ou 'macular' o bom curso de uma ação supostamente tecnocientífica neutra e desinteressada. Contudo, muito ao contrário, o enfrentamento deste triplo desastre não pode consistir num afastamento ou neutralização das ações e interesses políticos. A urgência e gravidade do desastre requerem, antes, uma intensificação dos debates e negociações políticos à condição de que esta seja entendida não como oposta ou exterior à natureza e à tecnologia, mas como cosmopolítica (Stengers e Latour), como a arte de ampliar o coletivo, o número de seres que aí são capazes de agir e de falar: homens, coisas, entes naturais não humanos. Nesta semana, no curso de Bruno Latour precisamente sobre Filosofia Política da Natureza, sob o impacto dos desastres no Japão, o texto de referência era "A grande transformação", clássico de 1944, do historiador (ou antropólogo) da economia, Karl Polanyi. A partir do desmonte que o autor faz da utopia do mercado auto-regulador, Latour volta e meia "desviava" o problema para o presente atualíssimo, chamando a atenção para a necessidade de se passar da economia à ecologia, uma ecologia política, definindo política como "obtenção de acordos e abertura de possíveis". Uma das últimas frases desta obra em ano de fins de guerra ressoava como se pudesse ser dita hoje - o autor afirma que malgrado todo o "desenvolvimento econômico", "o homem resta fora de sua habitação". Muitos japoneses vivem hoje concretamente essa "evacuação" de sua própria morada. Mas o Japão é o mundo e o que está em jogo é nada menos que a nossa possibilidade de habitá-lo.

sexta-feira, 4 de março de 2011

Internet.FR: arquivo, identificação e vigilância


Após a Hadopi e a Loppsi 2, duas leis francesas recentes de caráter securitário com implicações sérias para a liberdade na Internet, um decreto rapidamente rebatizado de "Big Brother" estende a todos os internautas procedimentos de suspeição e vigilância historicamente exercidos por regimes autoritários ou reservados a indivíduos suspeitos. O decreto prevê a conservação de dados de conexão por parte de provedores, servidores, hosts e prestadores de serviços na Internet, tendo em vista "a identificação de toda pessoa física ou jurídica que tenha contribuído para a produção de um conteúdo on-line". Tais dados devem ser conservados por um ano e são bastante detalhados. Conforme matéria do PCInpact, eis os tipos de dados que devem ser retidos:
"1. Pour les fournisseurs d’accès à Internet spécifiquement :
  • L'identifiant de la connexion
  • L'identifiant attribué par ces personnes (ndlr : les FAI) à l'abonné
  • L'identifiant du terminal utilisé pour la connexion lorsqu'elles y ont accès
  • Les dates et heure de début et de fin de la connexion
  • Les caractéristiques de la ligne de l'abonné
2. Pour les hébergeurs spécifiquement :
  • L'identifiant de la connexion à l'origine de la communication
  • L'identifiant attribué par le système d'information au contenu, objet de l'opération
  • Les types de protocoles utilisés pour la connexion au service et pour le transfert des contenus
  • La nature de l'opération
  • Les date et heure de l'opération
  • L'identifiant utilisé par l'auteur de l'opération lorsque celui-ci l'a fourni
3. Pour les FAI et les hébergeurs : les informations fournies lors de la souscription d'un contrat par un utilisateur ou lors de la création d'un compte :
  • Au moment de la création du compte, l'identifiant de cette connexion
  • Les nom et prénom ou la raison sociale
  • Les adresses postales associées
  • Les pseudonymes utilisés
  • Les adresses de courrier électronique ou de compte associées
  • Les numéros de téléphone
  • Le mot de passe ainsi que les données permettant de le vérifier ou de le modifier, dans leur dernière version mise à jour
4. Pour les FAI et les hébergeurs : lorsque la souscription du contrat ou du compte est payante, les informations suivantes relatives au paiement, pour chaque opération de paiement :
  • Le type de paiement utilisé
  • La référence du paiement
  • Le montant
  • La date et l'heure de la transaction
[Le décret précise que les données des parties 3 et 4 ci-dessus « ne doivent être conservées que dans la mesure où les personnes les collectent habituellement ».]"

É espantoso o conservadorismo frente a Internet na França, especialmente reforçado pelo "drive" securitário do atual governo. Mas cabe notar que este conservadorismo não se restringe a medidas políticas conjunturais, podendo ser lido em muitos textos de "pensadores" da comunicação e das novas mídias ou mesmo em parte do ativismo que busca "defender" a Internet dos abusos e perigos que supostamente assombram a Internet, com boas exceções, evidentemente. A minha impressão, dita muito superficialmente, é que boa parte do discurso sobre a Internet na França a considera ou uma rede relativamente desprezível (seja em termos cognitivos, políticos ou sociais), ou um lugar cheio de perigos. Assunto para outro post.
Para um bom passeio pela "deriva securitária" que marca os últimos 10 anos da Internet francesa, vale ler o artigo de Jean Marc Manach.

domingo, 30 de janeiro de 2011

Políticas e indústrias da (in)segurança na França: video-vigilância

Políticas e retóricas securitárias são efetivamente centrais na lógica dos governos contemporâneos, especialmente os europeus e norte-americanos. Sarkozy, na França, é um dos representantes mais eloquentes desta lógica, o que é claramente presente na agenda midiática e no cotidiano da cidade de Paris, em que são regulares, ao menos há seis meses (tempo que estou aqui), fechamentos de estações de metrô e monumentos de visitação pública sob ameaça ou suspeita de atentados terroristas. Além do fantasma do terrorismo, as políticas securitárias francesas são também claramente orientadas a populações imigrantes indesejáveis, associadas a uma periculosidade social e a uma delinquência potencial que seria preciso de algum modo combater ou conter. Atravessando tacitamente todo esse discurso "de superfície", há profusas e íntimas alianças entre o fluxo de investimentos financeiros-capitalísticos e a indústria da (in)segurança (conforme grafia proposta por Didier Bigo). O plano de vídeo-vigilância para a cidade de Paris é um dos produtos recentes dessa aliança.

O plano de vídeo-proteção, como é usualmente chamado na língua administrativa, prevê a instalação de 1000 ou 1302 câmeras (há controvérsias) na capital até 2012. É possível ver a lista dos locais de instalação das câmeras nesta matéria ou neste mapa publicado pela Owni, facilitando a visualização da geolocalização das câmeras e do seu "espectro" de monitoramento a partir do Google Street View. Um outro mapa também foi disponibilizado pela megalopolismag.com. Os argumentos são os mesmos, recorrentes na Europa e América do Norte: combate ao terrorismo, proteção da população a parir dos efeitos dissuasivo e preventivo das câmeras, produção de evidências para solução de crimes e delinquências. Enquanto a produção de provas post facto é, do ponto de vista da eficiência do dispositivo, um argumento supostamente plausível, segundo pesquisas, nada menos evidente que a proteção da população e o combate ao terrorismo sejam efetivamente facilitados pela vídeo-vgilância dos espaços públicos. Remanejamentos orçamentários, contudo, parecem ser uma das motivações não explícitas da empreitada, conforme esta matéria. Assim como os saldos positivos da indústria da (in)segurança, como mostra este artigo sobre a alta rentabilidade do mercado da vídeo-vigilância na França, dede os anos 1990.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Multiversos e cosmogramas (Quarta Carta de Cogitamus, Bruno Latour)

Um outro cosmos: multiversos, cosmogramas. São dessas outras "cosmologias" que trato brevemente nessa nota sobre a quarta carta do livro Cogitamus, de Bruno Latour. O ponto de partida é o belo livro de A. Koyré, Do mundo fechado ao universo infinito, o qual coincidentemente foi determinante na formação do meu entendimento da modernidade, ainda na graduação de uma psicologia fortemente afinada à epistemologia. Entendimento que, diz Latour, deve hoje ser revisto por pelo menos duas razões. Primeiro, porque essa passagem - do mundo fechado de Aristóteles e dos medievais ao universo infinito da ciência moderna de Galileu e Laplace - jamais se deu efetivamente. Ela é aquilo mesmo que caracteriza a narrativa moderna como ruptura com um passado primitivo e equivocado em direção a um futuro em posse da verdade e, no mínimo, promissor. Na sua contra-história da modernidade e da filosofia da ciência, Latour afirma que simplesmente passamos de um cosmo a outro, com a diferença de que este se acreditava um universo. Esta crença, contudo, não a temos mais. Eis a segunda razão da revisão do entendimento suposto no livro de Koyré. O século XXI não mais tem a certeza de viver num universo infinito. As discussões sobre ecologia e mudanças climáticas, por exemplo, nos advertem que temos agora que negociar não apenas entre nós, humanos, mas também com os recursos finitos da natureza. Mas não retornarmos ao cosmos aristotótico. Habitamos multiversos (retomando o termo do W. James). Ou ainda, habitamos um outro cosmos, mas este deve ter o sentido que habitualmente lhes dão os antropólogos: o agenciamento de todos os seres que uma cultura particular mantém juntos nas formas de vida prática. Apreender este outro, nosso, cosmos implica reconstituir "cosmogramas" (J. Tresch), sempre traçados seguindo as diferentes partes envolvidas nas controvérsisas que o constitui. "Descrever associações de conveniência, de coexistência, de oposição e de exclusão entre seres humanos ou nào humanos cujas condições de existência são pouco a pouco explicitadas sob a prova das disputas...Traçar cosmogramas é se tornar sensível a essas listas de associações e duelos lógicos sem recorrer à distinção do racional e do irracional, do moderno e do arcaico, do sistemático e do "bricolé".
Essa sensibilização para modos de existência diversos e para a natureza heterogênea e controversa do que entendemos por "mundo", "cosmos" ou "universo" é especialmente provocativa para quem, como eu, tem uma formação em ciências humanas e em particular em psicologia. A acolhida desta perspectiva no campo reconhecidamente híbrido da comunicação é menos controversa, creio. Mas o que julgo mais interessante nestas belas idéias e imagens de multiversos e cosmogramas, é que elas permitem não apenas uma reflexão diferenciada das ciências humanas e sociais sobre a ciência e a tecnologia, mas também conexões pouco usuais entre o cosmos assim entendido e a política. Cosmopolíticas, como se verá em post próximo.

Ps: Lamento pela pelo caráter pouco didático deste post, que merecia explicações mais detalhadas para ser plenamente compreendido. Tomem-no como pistas e traços a serem percorridos e continuados.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Escola

Um das boas experiências deste período em Paris é poder acompanhar, através do meu filho de 07 anos, o cotidiano do que sempre foi meu ideal de escola: pública, laica e universal. Mas, assim como em todo o mundo, a escola também aqui amarga uma crise que já vem de longa data. Escapam-me, por falta de conhecimento, as muitas razões e os diversos estratos dessa crise. Aqui falo apenas de uma experência muito particular e desde um olhar talvez demasiadamente estrangeiro.
Um dos elementos desta tão falada crise da escola francesa é a sua dificuldade em lidar com a diversidade cultural, linguística e comportamental que hoje "perturba" o seu "programa" ao um só tempo pedagógico e civilizatório. Uma das melhores leituras desse processo é o filme "Entre os muros da escola", de Laurent Cantet. Uma escola que não cabe mais em seus muros disciplinares, os quais não delimitam como antes um "interior" progressivamente homogêneo em que todos devem seguir de modo relativamente uniforme a "marcha natural do espírito".
Uma das "saídas" para lidar com a diversidade de culturas hoje presente na escola francesa consiste em medidas que buscam "personalizar" ou "diferenciar" a escola segundo grupos de competências e necessidades específicas. Algumas escolas elementares oferecem, por exemplo, classes especiais para estrangeiros, as quais visam dar uma atenção especial a crianças qua não falam o francês. Assim que cheguei, ouvi diversas vezes essas propostas em tom elogioso, como se elas representassem um cuidado em atender às diferentes demandas dos estrangeiros. Vi com certa simpatia tais medidas, num primeiro momento, mas logo percebi a cilada que a "personalização" trazia consigo. O que parece ser uma afirmação e uma acolhida da diversidade mantém uma fronteira perigosa com a segregação. As classes especiais seriam uma forma de acolher a diversidade de culturas e línguas no seio da escola ou uma forma de "poupar" as crianças francesas e/ou francófonas do convívio ("perturbador") com esta diversidade? A fronteira é tênue e coloca em risco não apenas a dimensão republicana da escola quanto o seus objetivos pedagógicos. Essas medidas, que se alinham com o que tecnicamente se chama de "colégio diferenciado" e que se afina com as propostas dos "colégios de reinserção escolar" para os "adolescentes-problema" não apenas ampliam a segregação como implicam em resultados escolares desfavoráveis. Contra essa corrente, a afirmação e fortalecimento do chamado "colégio único", instaurado na França a partir de 1975, mais igualitário e com resultados escolares mais favoráveis, conforme pesquisa divulgada pela OCDE no bom artigo de Nathalie Mons no Le Monde. Contra a cilada da personalização, que diferencia sem implementar de fato uma política das diferenças, o colégio único se mostra bem mais interessante na tarefa de educar segundo perspectivas e contextos simultaneamente igualitários e heterogêneos.