segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Cartografia das controvérsias: notas (2)

O público fantasma é uma legião de "públicos" a reinventar.
Na segunda ou terceira aula do curso, Latour relança a já bastante conhecida provocação da falência ou a inexistência do Público. Em suas palavras: "o Público é um fantasma". A frase retoma Walter Lippman e seu livro O público fantasma (Le public fantôme), cuja mais recente edição francesa é apresentada por Latour. A provocação de retomar as idéias de um pensador liberal e um enunciado tão propalado pelas "direitas" pretende recolocar e mesmo fortalecer a questão da possibilidade da democracia segundo uma perspectiva que é a um só tempo pragmática, sociotécnica, controversa. Afirmar o caráter fantasmático do Público não é nem um ato de descrença na democracia, nem uma negação da ação pública tout court; ao contrário, é um ato de fé na democracia, a qual depende, para os autores (Lippman e Latour), do reconhecimento de que o Público não é a solução das questões democráticas, mas sim um de seus problemas (ver também Dewey, J. The public and its problems). Logo, não se deve partir da existência do público como uma realidade de fato, mas sim como um problema a ser enfrentado. Pois o Público com P maíusculo é um fantasma, uma invenção das teorias idealistas da democracia, assim como as diversas formas de "Todo" que lhes são associadas - a "vontade geral", o "espírito público", até mesmo "a sociedade". Sobre estes fantasmas que se armaram os ideais fracassados da democracia, os quais foram lidos também como fracasso do Público (apatia, falta de vontade política, esmaecimento das lutas coletivas, escasso engajamento e cuidado com a "coisa" pública etc). Se houve fracasso, é porque não existe tal Público, mas muitos e diversos "públicos", e estes não estão aí prontos, mas precisam ser constituídos, potencializados, capacitados. 
Para tanto, eis a dimensão sociotécnica e pragmática, é preciso criar tecnologias, aparatos cognitivos que capacitem e constituam tais públicos. Os públicos, no sentido específico e pragmático são uma questão de medium. Se a imprensa pôde ser uma dessas tecnologias, cabe recolocar a questão - que tecnologia podemos inventar para a democracia hoje?
Como tal perspectiva se articula ao projeto de cartografia das controvérsias? Primeiro, pela idéia de que são nos momentos de crise, de incerteza, de controvérsias que o público é (ou deve ser) constituído e chamado a participar no debate, apreender os problemas que estão em jogo e tomar decisões. Ou seja, a possibilidade de ação do público e da democracia está atrelada a um mundo entendido como controverso, múltiplo, incerto. Segundo, a incerteza e a complexidade do mundo e de questões públicas e políticas só podem ser matéria de discussão e deliberação pública se os cidadãos, "naturalmente" desprovidos de recursos cognitivos, forem capacitados e aparelhados para tanto. Cartografar controvérsias é um passo em direção a esta construção de tecnologias voltadas para a potencialização do debate público e político, de tecnologias para a democracia. Tais tecnologias não são representativas de uma "vontade geral", mas instrumentos do "fazer comum" (faire ensemble). Por meio do "mapa" de uma controvérsia, os cidadãos podem visualizar posições, ações e consequências de ações sobre uma matéria específica e, por sua vez, agir "publicamente" e politicamente.
Ao longo da aula, pensei nos inúmeros dispositivos que têm sido criados ou apropriados na web (twitter , plataformas de compartilhamentos diversas, cartografias e sitemas de visualização de dados e processos socio-culturais e políticos, certas redes sociais) e que de alguma forma podem ser lidos como tendo um parentesco com essas tecnologias de ação pública ou de públicos específicos e momentâneos. Uma pista interessante para pensar a ação pública e política nesses contextos, e também a passagem (que venho explorando em diversos níveis) do privado ao público, do indivíduo ao coletivo, do eu ao nós. A advertência de que, assim como o eu, o nós não existe e está por vir, é, embora aparentemente óbvia, decisiva.
Ainda sobre a web, como apontei no último post sobre este mesmo curso, ela é uma importante aliada do projeto de cartografia das controvérsias, tanto porque é um "reservatório" de ferramentas potenciais para cartografar controvérsias, quanto porque é um potente "suporte" para a disponibilização das cartografias (veja alguns exemplos neste site).

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

No princípio, a ação (Terceira carta de Cogitamus, Bruno Latour)

"Au début, c'était l'action" (No princípio, era a ação). Eis o ponto de partida para o entendimento das técnicas e tecnologias. No início, a ação; depois a técnica. E quando estas se tornam transparentes, invisíveis e naturalizadas, cabe retraçar o curso de ação que as constituem. No caso das ciências, o antigo dito de João - "no princípio, era o verbo" - é retomado, mas num sentido todo próprio. Melhor seria dizer "discurso", "enunciado", em torno do que Latour propõe um novo exercício aos seus "alunos". Partir de um enunciado "flutuante", capturado um pouco ao acaso e em qualquer parte -  televisão, jornal, livro, blog - e tentar recondzi-lo às suas condições de produção. O exercício visa "ancorar" o enunciado ao mundo onde ele se produz, mundo de interlocuções humanas, mas também mundo de agentes não humanos, dos quais tratam muitas vezes os enunciados científicos sem lhes dar o devido crédito. Além disso, o exercício visa mostrar o quanto e como a ciência é construída por controvérsias.
Latour introduz mais uma  noção central - a de "controvérsia" - que vem, ao lado de "tradução" e "prova", formar a tríade conceitual do seu curso. Habitamos um mundo controverso e a ciência é ela mesma controversa. Cartografar as controvérsias é uma das tarefas do programa de humanidades científicas, permitindo visualisar e apreender uma série de movimentos e estados intermediários entre a dúvida radical e a certeza indiscutível. No lugar de uma ciência das extremidades, onde se encontram enunciados certos e estáveis, uma ciência de estados intermediários cuja cartografia permite mostrar que um enunciado científico, certo e estável, é a etapa final de uma série de controvérsias e não seu começo. E todo interesse desta cartografia consiste em compreender e perseguir os movimentos (controversos) através dos quais certos enunciados se tornam estáveis e certos, e outros não.
Latour retoma à sua maneira o embate (já empreendido de outros modos por diferentes autores, como Nietzsche, Foucault e outros) contra as tradicionais divisões segundo as quais a ciência e a razão ocidental se conceberam: entre enunciados falsos e verdadeiros a diferença não é de natureza, mas de grau (para retomar aqui a usada fórmula bergsoniana). "As diferenças de natureza entre os enunciados 'falsos' e os enunciados 'verdadeiros', os rumores e as descobertas, os argumentos discutíveis e os fatos indiscutíveis correspondem a etapas sucessivas na série de transformações que um enunciado deve sofrer para esgueirar-se entre os 'prós' e os 'contra'". Vemos logo ressoar outro antigo embate entre a retórica e a demostração, o qual Latour propõe retomar não segundo a lógica da oposição, mas segundo dois ramos da eloquência, por meio dos quais (e através de uma série de engenhosidades, astúcias e montagens) uma evidência ou um enunciado indiscutível se produz, na saída de uma cadeia de elementos nada evidentes e de uma série de discussões e controvérsias. Retraçar essa série e essa cadeia ruidosa porém usualmente deixada na invisibilidade ou no silêncio de caixas pretas  é compreender a elaboração progressiva de provas e a busca tateante pela verdade, em vez de supor um conflito entre as forças do verdadeiro e as forças das paixões e dos preconceitos.
Um tal (outro) amor pelas ciências retoma seus vínculos com a política. Entre o cogito - eu penso - e o cogitamus* - nós pensamos - é preciso escolher.
*O termo "cogitamus", que dá título ao livro, não é apenas uma espécie de contra-referência a Descartes, mas também uma alusão à noção de "Denkkollectiv" (coletivo de pensamento) formulada por Ludwik Fleck (Genèse et développement d'un fait scientifique, 1935), considerado o inventor da sociologia das ciências.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Perspectiva em movimento (Segunda carta de Cogitamus, Bruno Latour)

As notas desta segunda carta não seguirão o ritmo relativamente didático das anteriores. Limito-me a poucos apontamentos fragmentados de algumas passagens, todas relativas ao que chamo aqui grosseiramente de perspectiva em movimento.
No lugar do objeto, séries de ações, desvios, associações, traduções, composições, substituições. No lugar da unidade e da entidade bem delimitada, o múltiplo. O controverso no lugar do unificado e o mediatizado no lugar do "imediato". Esses deslocamentos, recorrentes no "programa" de Latour, propõem uma mudança de perspectiva em relação, sobretudo, aos "objetos" das ciências e das técnicas.  Tomar tais objetos segundo uma perspectiva sociotécnica, como sugere Latour, é de algum modo colocá-los em movimento, ou melhor, retraçar ou seguir o movimento que os constituem malgrado a sua aparente estabilidade. Essa imagem do movimento aparece muitas vezes nesta segunda carta de Cogitamus (la Découverte, 2010). Extratos:
"Un peu comme si chaque objet technique devenait la page d'un flipbook dont vous apprendriez à faire défiler très vite les pages pour sisir le seul mouvement" (p. 53)
"...saisir les techniques comme un projet et non pas comme un objet. Ou plutôt l'objet existe bien mais à la façon d'une coupe à un instant t. L'objet, c'est un arrêt sur une image du film du projet."(p. 55)
Claro que esse movimento não é linear nem uniforme, mas cheio de ziguezagues, contraposições, "encaixotamentos". E, igualmente importante, este movimento também é tempo. Latour chega mesmo a propor um gráfico que resumiria uma "tendência" ou um movimento de conjunto da nossa história sociotécnica - dos babuínos ao homem contemporâneo. São três seus "princípios". Primeiro, acumulação, conservação e recomposição de todas as compotências advindas ao longo da história, de modo que nenhuma inovação chega a abolir as precedentes. Segundo, um "alongamento" dos desvios implicados nas competências e objetos. Um computador, por exemplo, envolve um número muito maior de desvios e traduções (componentes materiais, empresas, acordos comerciais, licensas etc) do que uma flecha. Terceiro, a extensão crescente de seres de naturezas diversas mobilizados em nossas ações sempre compostas - mobilizamos cada vez mais o mundo, a matéria, os seres de toda sorte em nossos objetos. Não, a técnica não nos afasta do mundo e das coisas elas mesmas, ao contrário, estamos cada vez mais misturados à intimidade da matéria - partículas, moléculas, átomos. História de homens e de coisas, história socieotécnica. Daí o slogan: "Materializar é socializar; socializar é materializar" (p. 65). Tomar pé da história assim entendida é, sobretudo hoje, uma ação política. 

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Cogitamus, por Bruno Latour

Cogitamus: six lettres sur les humanités scientifiques é o mais recente livro de Bruno Latour. Trata-se de um livro epistolar: seis cartas resumem um curso de Humanités Scientifiques (Sciences Po) para uma estudante alemã, que não pôde acompanhar as aulas, mas que o provoca com uma inquietação a respeito dos embates envolvidos na Convenção sobre mudanças climáticas em Copenhague.
Comecei a leitura ontem e ao que consta em sua contra-capa, o livro pretende ser uma introdução, para um público mais amplo, ao estranho domínio das "humanidades científicas" (Humanités Scientifiques). Não traz, assim, maiores novidades em relação a livros anteriores, mas reapresenta, agora num contexto de formação, conceitos e idéias já formulados. O que os faz operar de modo mais claro e ágil, além de aproximarem o leitor das pistas, obstáculos e decisões metodológicas da pesquisa que o autor realiza e ensina. Nesse sentido, os conceitos e idéias aparecem neste livro numa outra "escala ótica", não usual, mais próxima do que seria o cotidiano do pensamento, da pesquisa e do ensino. O que afinal faz todo sentido, considerando a "matéria" do livro.
Deixo aqui as minhas notas sobre a primeira carta:

Como definir um curso, e este curso em particular, que trata de algo tão pouco disciplinar como "humanidades científicas", um domínio que nem existe de fato? Por negação, primeiro, o curso não trata de ciências e tecnologias simplesmente, mas sim de suas relações com a história, a cultura, a literatura, a economia, a política. Seu objetivo é colocar em questão a idéia de autonomia das ciências e das técnicas (aqui reencontramos o conhecido programa da sociologia das ciências) e o foco que interessa neste questionamento é precisamente aquele que bascula as fronteiras das ciências e tecnologias com a política. Para mostrar as associações entre esses domínios, Latour retoma o discurso de Plutarco sobre o papel de Arquimedes no cerco dos romanos a Siracusa, já comentado em outros textos seus. A bela análise do autor/professor mostra como, malgrado a denegação do próprio Plutarco (que, após ter mostrado o quanto se cruzam os interesses e ações de Arquimedes e do rei, acaba por manter o primeiro como um cientista puro e desinteressado das questões mundanas), um encadeamento de traduções, desvios e composições mistura o mundo da geometria de Arquimedes e o mundo da geopolítica o rei de Siracusa, a quem o primeiro oferece uma "solução" técnica (o sistema de roldanas, que por sua vez traduzia uma expressão geométrica) para um problema político (o assalto dos poderosos e numerosos romanos a Siracusa). "Dêem-me um ponto fixo que erguerei o mundo". Inversão das relações forças: entre um velho sábio e um exército; entre um império e uma pequena cidade. E também "passagem", trânsito, composição entre o mundo da ciência e o mundo político, entre a geometria e a geopolítica: domínios antes estranhos um ao outro tornam-se comensuráves (ainda que o discurso científico e político convencionais voltem a torná-los aparentemente incomensuráveis, como faz Plutarco).
Tradução, desvio e composicão: eis os três conceitos centrais do curso-livro. Conceitos que operarão a substituição da metáfora do corte entre as ciências e a política (e o resto da existência) pela metáfora dos liames sucessivos entre eles. Traduzir é transportar transformando: transcrever, transpor, deslocar. Daí a importância do desvio, pois toda tradução implica um desvio, a instauração de uma ambigüidade na ação, idéia, conceito, interesse do 'outro'. Deste modo, toda ação, criação, ciência é composta de uma série de desvios em que práticas, interesses, conhecimentos de diversos campos (científico, político, econômico etc) se afetam reciprocamente. A proposta do curso, tratar das humanidades científicas, é seguir esses cursos de ação, as traduções e desvios nele implicados, e suas composições, pois "l'action est toujours composée et la somme de cette composition est toujours ambiguë". E ainda, retomando o caso de Arquimedes: "Voyez pourquoi je parle de composition: au final, l'action est tissée par ces enchaînements et ressemble à un feuilleté de préoccupations, de pratiques, de langues différentes - celles de la guerre, de la géométrie, de la philosophie, de la politique." As ciências e tecnologias, longe de serem um domínio autônomo, são mais ou menos interessantes conforme a sua aptidão a se ligar a outros cursos de ação. Interessante aqui reconduz a uma outra noção cara a Latour: a noção de interesse ou mais precisamente de "intéressement". A aptidão a se ligar a outros cursos de ação consiste na aptidão a interessar, lembrando que a origem latina da palavra interesse designa aquilo que se coloca entre duas coisas "inter-esse". Seguir os cursos sinuosos dos encadeamentos de traduções, interesses, desvios e composições é o que se propõe no estudo das "humanidades científicas". Estudo que deve ter em mente que no fim de cada trajetória jamais encontrará "a ciência", "a sociedade" ou "a política" como domínios de fronteiras nítidas e histórias particulares, mas, antes, redes de ações coletivas.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

European Boundaries of Humanity

Na semana passada, o CERI sediou o Colóquio European Boundaries of Humanity 1 e 2, organizado por Didier Bigo. Apresentações interessantes e instigantes sobre segurança, território, comunidade, política, vigilância, mobilidade, antecipação, predição. Segue abaixo um resumo da programação e os links para a versão completa:
Une coopération CERI-Sciences Po, Leverhulme Trust et Birkbeck College
Mercredi 27 octobre 2010
Session 1 (17h00-19h00): European Boundaries of Humanity: Drawing Lines in Borderland?
Jeudi 28 octobre 2010
Session 2 (9h00-12h00) : The Undesirables
Session 3 (13h30-16h00) : The World as Us: Beyond Diplomacy
Session 4 (16h30-19h00) : Critical Geographies of Humanity
Un projet FP7-INEX / LISS COST / EU-Canada
Vendredi 29 octobre 2010
Session 1 (9h00-12h30): Technologies, Bodies and Identities: The Reframing of Human Boundaries
Session 2 (14h00-18h00): The Boundaries of Rights and Privacy?

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Doctoral workshops CERI/Sciences Po

Nesta semana, nos dias 25 e 26 de outubro, acontecem no CERI/Sciences Po workshops voltados para cursos de doutorado de quatro universidades: Sciences Po, PUC-Rio, King's College London e UVIC. O tema central do workshop é "International Political Sociology". Destaco duas mesas mais próximas do interesse da minha pesquisa: Analysing Practices of (In)Security and Surveillance, que acontece dia 26/10 às 14:00h, e "Methodologies Questioning the International", no mesmo 26/10, às 17:30. Nesta última mesa, meu especial interesse pela apresentação de Didier Bigo, que discutirá três importantes noções teórico-metodológicas: agenciamento, campo e dispositivo (no título em inglês: "Assemblage, Field and Dispositif").
O programa completo dos workshops está disponível para download.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Cartografia das Controvérsias: notas (1)


Eis as primeiras notas do curso Cartografia das Controvérsias ministrado por Bruno Latour na Sciences Po. Estas notas dão uma idéia geral do curso e do programa no qual ele se insere. Nas notas seguintes passo às minhas impressões e reflexões inspiradas pelas aulas.
O curso é ministrado para a pós-graduação em Comunicação da Sciences Po e faz parte de um projeto mais amplo, o MACOSPOL - Mapping Controversies on Science for Politics, que desenvolve pesquisas colaborativas envolvendo universidades de diferentes partes do mundo.

Cartografar Controvérsias
Um dos aspectos mais interessantes do curso reside na sua tentativa de "responder" a um problema de extrema atualidade: o da necessidade de criação de dispositivos políticos capazes de potencializar a participação democrática no contexto das novas redes e tecnologias digitais. Uma de suas questões centrais poderia ser - como agir e fazer agir politicamente hoje, utilizando as redes e tecnologias digitais? Diante de uma reconfiguração significativa nos modos produção e circulação de informações (especialmente visível na Internet em sua versão 2.0), é preciso criar dispositivos que potencializem, tanto no âmbito cognitivo, quanto social e político, a participação nos debates e decisões da vida pública. Na ausência da fonte de autoridade que garantia a verdade ou confiabilidade da informação, são as controvérsias mesmas que precisam ser cartografadas. Cartografar controvérsias é portanto uma abordagem ao mesmo tempo teórica, metodológica e política que se inscreve no programa da ANT (Actor Network Theory) e que encontra um terreno fértil nas redes e tecnologias digitais de comunicação distribuída. Conforme aponta Latour no vídeo de introdução à Cartografia das Controvérsias, o oceano de informações que se produz hoje é tanto o "problema" a ser enfrentado quanto o campo mesmo de sua "solução". As mesmas ferramentas de produção e circulação das controvérsias podem ser apropriadas para cartografá-las. Os alunos do curso devem, assim, utilizar as próprias ferramentas da web para produzir suas cartografias. Neste sentido, a cartografia é também um dispositivo de visualização das controvérsias que permite não só a compreensão de um campo de problemas, mas também a participação política nas questões científicas e tecnológicas.

Visualizar controvérsias
Uma das maiores dificuldades que encontramos hoje na pesquisa de processos que envolvam a web, é desenvolver uma metodologia capaz de dar conta da imensidão e da fluidez dos dados que aí circulam. Cartografar controvérsias constitui, ao meu ver, um potente exercício metodológico para a pesquisa de processos na web. Na proposta do Latour, o foco incide sobre controvérsias no campo das ciências e tecnologias (e há todo um sentido nesta escolha, sobre a qual falo num próxmo post), mas a metodologia pode ser extremamente fértil em outros domínios. No curso da Sciences Po, a etapa de elaboração e disponibilização das cartografias na web é coordenada pelo pesquisador Tommaso Venturini. Vejam neste site as cartografias realizadas pelos alunos dos cursos ligados ao projeto MACOSPOL. Sugiro também este tutorial para a elaboração de cartografias de controvérsias.

Este projeto é extremamente inspirador para pesquisadores na área de comunicação. Recomendo vivamente um percurso pelos links indicados acima.

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Blogagem Coletiva de repúdio ao AI5 Digital


Aderindo à blogagem coletiva de repúdio aos projetos de vigilantismo (vulgo AI5 Digital) que ameaçam a liberdade na Internet brasileira. Vejam mas informações no blog do Mega Não! Estou na França, onde vigora uma lei - a Hadopi - que criminaliza o compartilhamento de arquivos e obras culturais na Internet, quando este viola direito autoral. Embora todos que conheço aqui digam que a lei é inexequível e que sua função é fundamentalmente retórica, o seu princípio é inaceitável. Para evitar que leis semelhantes controlem a Internet brasileira, é fundamental o repúdio ao AI5 Digital! E para quem ainda não assinou, veja a petição on-line em defesa da liberdade na Internet brasileira.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Call for Papers: Surveillance in Latin America

Estou editando, junto com Rodrigo Firmino, Nelson Arteaga, Marta Kanashiro e Vanessa Lara, um número especial da Revista Surveillance & Society / The international, interdisciplinary, open access, peer-reviewed journal of Surveillance Studies. O periódico é um dos mais importantes na área de estudos de vigilância e este número dedica-se a América Latina. Esta edição dá continuidade a uma série de eventos, publicações e parcerias da Rede Latino-americana de Estudos sobre Vigilância (em breve teremos um site), fundada em 2009.
Convidamos, assim, pesquisadores de diversas áreas a submeter artigos sobre o tema da vigilância na América Latina. Como o periódico é interdisciplinar e o tema faz fronteira com inúmeros campos de conhecimento, reflexão e intervenção, vale lembrar que o leque temático é amplo abarcando as dinâmicas da vigilância em diversos domínios: espaço urbano e ciberespaço, comunicação, entretenimento, práticas artísticas, ativismo, produção audiovisual, produção de subjetividade, entre outros. Aceitamos também indicações de livros de autores latino-americanos ou de temas latino-americanos para a sessão de resenhas (sempre relacionados à vigilância).
Abaixo o Call for Papers na íntegra (em inglês, português e espanhol), também disponível no site da Surveillance & Society.
Call for Papers: Issue 9(2): Surveillance in Latin America
Call for Papers "Surveillance in Latin America"
Chamada de Trabalhos "Vigilância na América Latina"
Convocatoria para trabajos “Vigilancia en América Latina”
[english - portugese and spanish follow]
Call for papers to researchers with specific interest in Latin America, and authors/participants of the events "Surveillance in Latin America" that took place in Curitiba (Brazil) and Toluca (Mexico), in 2009 and 2010, respectively:
We would like to invite you to attend the call for papers for a special issue of the journal Surveillance & Society (http://www.surveillance-and-society.org) that will have the same theme as the events in Curitiba (http://www2.pucpr.br/ssscla) and Toluca (http://bit.ly/c3Knxy), that is, "SURVEILLANCE IN LATIN AMERICA".
This call will be open to everyone interested in surveillance in Latin America. However, papers submitted and presented in both events can be integrally re-submitted to S&S in bilingual versions (Portuguese+English OR Spanish+English). We suggest that they be revised and updated.
IMPORTANT:
1) This is going to be a bilingual issue. Therefore, all papers (apart from the ones originally submitted to the event in English) MUST have two IDENTICAL versions: one in English and another in its original language (Portuguese or Spanish). After the refereeing process, changes and revisions eventually suggested by referees must be applied in both versions. Authors must follow the journal's author guidelines, available at: http://bit.ly/c81UpY
2) Submission MUST be made through the online submission process (please do not send it by email). Find more information at: http://bit.ly/bEkIq5
3) As it is a special issue, authors MUST write 'Latin America' in the 'Comments for the Editor' section on the first step of the 5-step submission process.
Submissions will undergo double blind reviews, according to the editorial rules of S&S.
Important dates:
January 20th, 2011 - submission deadline
April 20th, 2011 - review deadline
May 30th, 2011 - resubmission deadline
June/July, 2011 - Publication
We look forward to receive as many contributions as possible. This is a great opportunity to have your studies known by an international audience in a very reputable journal.
Regards,
Rodrigo Firmino, Nelson Arteaga Botello, Fernanda Bruno, Marta Kanashiro, Vanessa Lara.
[português]
Chamada de trabalhos à pesquisadores com foco na América Latina, e autores/participantes dos eventos "Vigilância na América Latina" realizados em Curitiba (Brasil) e Toluca (México), em 2009 e 2010 respectivamente:
Gostaríamos de convidá-los a participar da chamada de trabalhos para uma edição especial do periódico Surveillance & Society (http://www.surveillance-and-society.org) que terá como temática principal os eventos realizados em Curitiba (http://www2.pucpr.br/ssscla) e Toluca (http://bit.ly/c3Knxy), isto é, "SURVEILLANCE IN LATIN AMERICA".
Esta chamada será aberta a todos os pesquisadores interessados no tema da vigilância na América Latina, independente da participação nos eventos. Entretanto, os trabalhos submetidos e apresentados nos eventos podem ser re-submetidos na íntegra para a revista S&S em versões bilíngüe (português+inglês OU espanhol+inglês). Sugerimos ainda que sejam revistos e atualizados.
IMPORTANTE:
1) Será uma edição bilíngüe. Assim, todos os trabalhos (com exceção daqueles originalmente submetidos ao evento em inglês) DEVEM ter duas versões IDÊNTICAS: uma em inglês e outra na língua original (português ou espanhol). Após os pareceres e revisões, alterações eventualmente propostas pelos pareceristas devem ser realizadas em ambas as versões. Todos os trabalhos devem seguir as regras de formatação e redação do periódico, disponíveis em: http://bit.ly/c81UpY
2) Os trabalhos DEVEM ser submetidos através do sistema online de submissões do próprio periódico (favor não enviar por email). Mais informações sobre este processo podem ser encontradas em: http://bit.ly/bEkIq5
3) Como será uma edição especial, os autores DEVEM escrever "Latin America" no espaço reservado como "Comments for the Editor" no primeiro de cinco passos no processo de submissão online.
As submissões receberão duplos pareceres anônimos conforme as regras editoriais do S&S.
Datas importantes:
20/01/2011 - submissão do artigo completo
20/04/2011 - resposta com pareceres
30/05/2011 - limite para resubmissão
Junho/Julho 2011 - publicação
Esperamos poder contar com a participação do maior número possível de trabalhos. Esta é uma grande oportunidade de divulgação de suas pesquisas a um público internacional em um periódico de muito respeito.
Abraços,
Rodrigo Firmino, Nelson Arteaga Botello, Fernanda Bruno, Marta Kanashiro, Vanessa Lara.
[español]
Convocatória para trabajos a los investigadores con un enfoque en América Latina, y autores/participantes de los eventos “Vigilancia en América Latina”, que tuvieron lugar en Curitiba (Brasil) y Toluca (México), en 2009 y 2010, respectivamente:
Queremos invitarlos a participar en la convocatoria de trabajos para una edición especial de la revista Surveillance & Society (http://www.surveillance-and-society.org) que tendrá el mismo tema que los eventos en Curitiba (http://www2.pucpr.br/ssscla) y Toluca (http://bit.ly/c3Knxy), esto es, “VIGILANCIA EN LATINOAMÉRICA”.
Esta convocatoria estará abierta a toda persona interesada en la vigilancia en Latinoamérica. Sin embargo, los trabajos registrados y presentados en ambos eventos pueden ser entregados también para la S&S en versiones bilingües (Español + Inglés ó Portugués + Inglés). Sugerimos que sean versiones revisadas y actualizadas.
IMPORTANTE:
1) Esta será una edición bilingüe. Por lo tanto, todos los textos (con excepción de aquellos originalmente enviados a los eventos en inglés) DEBERÁN tener dos versiones IDÉNTICAS: una en inglés y otra en su idioma original (Portugués ó Español). Después del proceso de dictaminación, los cambios y revisiones que eventualmente sean sugeridos por los dictaminadores, deberán realizarse a las dos versiones. Los autores deben seguir los criterios editoriales de la revista, disponibles en: http://bit.ly/c81UpY
2) Los trabajos DEBERÁN ser entregados a través del sistema en línea de entrega de la propia revista (favor de no enviar por correo electrónico). Más información en: http://bit.ly/bEkIq5
3) Al ser una edición especial, los autores deberán escribir “Latin America” en el espacio denominado “Comments for the Editor”, en el primero de los cinco pasos del proceso de entrega.
Los trabajos entregados serán evaluados bajo el criterio pares ciegos, de acuerdo con las normas editoriales de la S&S.
Fechas importantes:
Enero 20, 2011- Fecha límite para entrega de trabajos
Abril 20, 2011- Fecha límite para dictaminar trabajos
Mayo 30, 2011- Fecha límite para reenvío de trabajos
Junio/julio, 2011- Publicación
Esperamos contar con la mayor cantidad posible de contribuciones. Esta es una gran oportunidad para divulgar sus trabajos de investigación entre un público internacional en una revista de prestigio.
Saludos,
Rodrigo Firmino, Nelson Arteaga Botello, Fernanda Bruno, Marta Kanashiro, Vanessa Lara.

Cotas na UFRJ: Carta Aberta

Carta aberta sobre as cotas na UFRJ
Ao contrário do que pretendem afirmar alguns setores da imprensa, o debate em torno de políticas afirmativas e de sua implementação no ensino universitário brasileiro não pertence à UFRJ, à USP ou a qualquer setor, "racialista" ou não, da sociedade. Soma-se quase uma década de reflexões, envolvendo intelectuais, dirigentes de instituições de ensino, movimentos sociais e movimento estudantil, parlamentares e juristas.
Atualmente, cerca de 130 universidades públicas brasileiras já adotaram políticas afirmativas - entre as quais, a das cotas raciais - como critério de acesso à formação universitária. Entre estas instituições figuram a UFMG, a UFRGS, a Unicamp, a UnB e a USP, que estão entre as mais importantes universidades brasileiras.
Em editorial da última terça-feira, 17 de agosto, intitulado "UFRJ rejeita insensatas cotas raciais", o jornal O Globo assume, de forma facciosa, uma posição contrária a essas políticas afirmativas. O texto desmerece as ações encaminhadas por mais de cem universidades públicas e tenta sugestionar o debate em curso na UFRJ. Distorcendo os fatos, o editorial fala em "inconstitucionalidade" da aplicação do sistema de cotas, quando, na verdade, o que está em pauta no Supremo Tribunal Federal não é a constitucionalidade das cotas, mas os critérios utilizados na UnB para a aplicação de suas políticas afirmativas.
Na última década, enquanto a discussão crescia em todo o país, a UFRJ deu poucos passos, ou quase nenhum, para fazer avançar o debate sobre as políticas públicas. O acesso dos estudantes à UFRJ continua limitado ao vestibular, com uma mera pré-seleção por meio do ENEM, o que significa um processo ainda excludente de seleção para a entrada na universidade pública. Apesar disso, do mês de março para cá, o debate sobre as cotas foi relançado na UFRJ e, hoje, várias decisões podem ser tomadas com melhor conhecimento do problema e das posições dos diferentes setores da sociedade em relação ao assunto.
Se pretendemos avançar rumo a uma democracia real, capaz de assegurar espaços de oportunidades iguais para todos, o acesso à universidade pública deve ser repensado. Isto significa que é preciso levar em conta os diferentes perfis dos estudantes brasileiros, em vez de seguir camuflando a realidade com discursos sobre "mérito" (como se a própria noção não fosse problemática e como se fosse possível comparar méritos de pessoas de condição social e trajetórias totalmente díspares) ou sobre "miscigenação" (como se não houvesse uma história de exclusão dos "menos mestiços" bem atrás de todos nós).
Cotas sociais - e, fundamentalmente, aquelas que reconhecem a dívida histórica do Brasil em relação aos negros - abrem caminhos para que pobres dêem prosseguimento aos seus estudos, prejudicado por um ensino básico predominantemente deficiente. Só assim os dirigentes e professores das universidades brasileiras poderão continuar fazendo seu trabalho de cabeça erguida. Só assim a comunidade universitária poderá avançar, junto com o país e na contra-mão da imprensa retrógrada, representada por O Globo, em direção a um reconhecimento necessário dos crimes da escravidão, crimes que, justamente, por ainda não terem sido reconhecidos como crimes que são, se perpetuam no apartheid social em que vivemos.
Rio de Janeiro, 19 de agosto de 2010
Assinam os professores da UFRJ:
Alexandre Brasil - NUTES
Amaury Fernandes – Escola de Comunicação
André Martins Vilar de Carvalho - Filosofia/IFCS e Faculdade de Medicina
Anita Leandro – Escola de Comunicação
Antonio Carlos de Souza Lima – Museu Nacional
Clovis Montenegro de Lima - FACC/UFRJ-IBICT
Eduardo Viveiros de Castro – Museu Nacional
Denilson Lopes – Escola de Comunicação
Fernando Rabossi - IFCS
Fernando Alvares Salis – Escola de Comunicação
Fernando Santoro - IFCS
Flávio Gomes - IFCS
Giuseppe Mario Cocco - Professor Titular, Escola de Serviço Social
Heloisa Buarque de Hollanda – Professora Titular, Escola de Comunicação/FCC
Henrique Antoun - Escola de Comunicação
Ivana Bentes – Diretora, Escola de Comunicação
Katia Augusta Maciel - Escola de Comunicação
Leonarda Musumeci – Instituto de Economia
Lilia Irmeli Arany Prado – Observatório de Valongo
Liv Sovik – Escola de Comunicação
Liz-Rejane Issberner - FACC/UFRJ-IBICT
Marcelo Paixão – Instituto de Economia
Marcio Goldman – Museu Nacional
Marildo Menegat – Escola de Serviço Social
Marlise Vinagre - Escola de Serviço Social
Nelson Maculan - Professor titular da COPPE e ex-reitor da UFRJ
Olívia Cunha – Museu Nacional
Otávio Velho – Professor Emérito, Museu Nacional
Paulo G. Domenech Oneto – Escola de Comunicação
Renzo Taddei – Escola de Comunicação
Roberto Cabral de Melo Machado - IFCS
Samuel Araujo – Escola de Música
Silvia Lorenz Martins - Observatorio do Valongo
Suzy dos Santos – Escola de Comunicação
Tatiana Roque – Instituto de Matemática
Virgínia Kastrup – Instituto de Psicologia
Silviano Santiago, Professor emérito, UFF
Alabê Nunjara Silva, graduando em RI, UFRJ
Fernanda Bruno - Instituto de Psicologia (*assinado agora, no momento deste post)

domingo, 15 de agosto de 2010

Novidades para a vida rastreável: Life Account e Merry Misser

Duas tecnologias-serviços recentes, produzidas no cruzamento da pesquisa acadêmica e do mercado, tornam mais visíveis as possibilidades de monitoramento e rastreamento da vida cotidiana no sentido de extrair padrões de comportamento e projetar futuros imediatos que possam intervir proativamente nas escolhas dos indivíduos.
Life Account é uma plataforma criada pelo coletivo de estudantes mexicanos Rhinnovation, que acaba de ganhar o prêmio Cisco I-Prize A plataforma segue a mina da captura de dados de usuários, mas a sua novidade consiste em cruzar dados on-line com aqueles capturados através dispositivos acoplados aos objetos do mundo "físico". Reúne, assim, a chamada "Internet das coisas" com a disponibilização de dados pessoais incrementada pelas mídias sociais, criando um banco de dados com perfis virtuais que expressem hábitos e padrões comportamentais de usuários. Essa "expressão" não fala apenas do que já está aí, ou ali, no usuário, mas também do que ainda supostamente não foi detectado seja pelo próprio usuário, seja pelo mercado, seja pelos especialistas em marketing. Desejos e necessidades "escondidos" não mais no inconsciente de cada um, mas na massiva trama de dados inter-individuais que, uma vez "minerados", projetam "tendências" ultra-personalizadas.
Confrome matéria do Read Write Web:
"Life Account will generate a database with improved and meaningful information about the market and customers," said team leader Darius Lau. "Information can be filtered, reducing the complexity and response time of activities, while maximizing communication among people, companies and smart devices in order to detect under-served and unarticulated needs, expectations and desires about the products, and market research for its key partners, while always protecting the privacy of its users."

Tenho argumentado, contudo, que não se trata exatamente da detecção de padrões "escondidos" ou não visualizáveis no fluxo desorganizado de dados, mas da performatividade ou proatividade desta detecção ou visualização. Numa palavra, elas funcionam, quando funcionam, não apenas porque atendem a um desejo ou necessidades prévios, mas porque os incitam ou excitam quando anunciados. Velho lema da publicidade e outras estratégias persuasivas, mas que agora ganha uma temporalidade e uma espacialidade muito peculiares, articuladas à possibilidade de se rastrear as ações cotidianas de um número imenso de indivíduos em tempo real ou muito próximo disso, e ao mesmo tempo "processá-las", ordená-las e categorizá-las de forma extremamente veloz, permitindo intervir sobre essas ações e seus futuros imediatos quando elas ainda estão "vivas" ou em curso.
O outro serviço é um aplicativo para mídias móveis (ainda em estado de protótipo) que pretende rastrear o histórico de compras do usuário e seus dados de localização e construir uma "memória" capaz de orientá-lo quando ele se aproxima de uma oportunidade de consumo. A idéia é monitorar o usuário de modo a antecipar suas expectativas de compra e fazer aconselhamentos que inibam compras impulsivas e gastos desnecessários. Um serviço que se deseja mais perto da psicologia do que do marketing, ainda que com a mesma retórica - fazer de você um consumidor mais feliz. Mas enquanto o marketing e a publicidade monitoram para incitar o consumo, o bem intencionado Merry Misser monitora os indivíduos para orientá-los a gastarem menos ou a pensarem duas vezes antes comprar. Diz seu slogan: "A financial watchdog that watches out for you."

Os dois serviços reúnem duas faces de uma mesma moeda. Na vida rastreável, as tecnologias de monitoramento se misturam às tecnologias do cuidado, e olham por você. Dois lemas cada vez mais complementares: monitoring is business; monitoring is caring.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Espera, futuro e fotografia, por Maurício Lissovsky

Na sequência e fazendo tremer o post anterior: "Uma das principais intenções do meu livro era mostrar que a fotografia contém índices de futuro e não apenas índices de passado. Como “historiador”, estou convencido que são estes índices de futuro que tornam estas imagens inteligíveis hoje (e um “hoje” muito particular que nos permite perceber certas imagens e não outras). Por isso o passado, de fato, nunca está “resolvido”. Ele nos busca. Ele nos visa. Mas as forças que configuram as imagens não são apenas oriundas do Mundo ou do Gesto do fotógrafo. Há uma vontade das imagens ali também, há uma luta pela “sobrevivência” (também, e principalmente, no sentido Warburguiano). Toda imagem fotográfica é um campo de luta e um amálgama de tempos. Toda fotografia é um cristal das tensões que a constituem." (Entrevista de Maurício Lissovsky a Ronaldo Entler, sobre seu livro A Máquina de Esperar, Mauad, 2009)
Foto: Gentil Barreiro | Maurício Lissovsky em 1986

Sobre as novas possibilidades de manipulação e circulação da fotografia em tempos digitais:
"Resumidamente, acho que as facilidades de manipulação e processamento das fotografias nos ajudam a tornar visíveis os sonhos que estas imagens traziam “adormecidos em seu ventre”. Estes recursos colocaram ao alcance de qualquer criança e da intuição do artista mais ingênuo a possibilidade de liberar estes sonhos em grande escala e com fácil acesso (facilitando muito a vida de pesquisadores que teriam que realizar meses ou anos de pesquisa iconográfica para observar resultados similares). Por outro lado, não está muito claro qual o estatuto destas imagens na sociedade contemporânea e em quê coisa estão se transformado as imagens antigas. Um teórico americano, WJT Mitchell criou a expressão de “biodigital picture” para tentar descrever o que são estas imagens na cultura contemporânea e como elas funcionam, mas o debate está totalmente em aberto. No que diz respeito estritamente aos arquivos, a única perda a lamentar é que o predomínio do acesso sobre o depósito (facilitado pelos meios digitais e pela internet) tornou mais obscura a dimensão de vizinhança das imagens, seus padrões de acumulação. Sua vida coletiva, digamos assim. Esta dimensão “original” passará a ser algo que apenas especialistas eruditos terão contato." (Maurício Lissovsky, em entrevista a Ronaldo Entler)

A ótima entrevista, na íntegra, está no site Fórum Latino-Americano de Fotografia de São Paulo.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Tempo sobreposto


De costas para o instantâneo, essas fotografias de Michael Weslesy são de longa duração: com exposição de anos, a imagem acumula e sobrepõe camadas temporais. No lugar do instante capturado, o movimento redobrado. As fotografias neste post são da Potsdamer Platz em Berlim, com exposição de 1997 a 1999, período em que o espaço estava sendo reconstruído. Deixo essas imagens fantasmagóricas para a querida @vonthenen, que me recebeu recentemente em Berlim, detesta a Potsdamer Platz e adora fotografias.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Pós-doutorado Sciences Po


Estou residindo em Paris por um ano para um pós-doutorado na Sciences Po Paris. O ano letivo começa em setembro e estarei vinculada a dois núcleos de pesquisa: o SUERTE/CERI e o MÉDIALAB. O Suerte/CERI é coordenado por Didier Bigo, meu orientador, e desenvolve pesquisas sobre as evoluções nas práticas contemporâneas de segurança e vigilância na Europa e na América do Norte. A minha participação no Suerte/CERI tem dois focos principais. Primeiro, discutir os processos globais de vigilância na sociedade contemporânea, cotejando as particularidades da Europa, da America do Norte e do Brasil. Este cotejamento é de grande interesse para o meu projeto, uma vez que ele integra a Rede de Estudos sobre Visibilidade, Vigilância e Tecnologia na America Latina, da qual sou membro-fundadora. Além disso, há uma especial oportunidade de discutir com este grupo questões relativas ao monitoramento e vigilância de dados no ciberespaço, tema de interesse comum. Esta oportunidade é enriquecida pelos vínculos que o grupo SUERTE/CERI e seu coordenador mantêm com outros núcleos de pesquisa. A saber, o IN:EX (Converging and conflicting ethical values in the internal/external security continuum), que analisa tecnologias de monitoramento de dados e empresas de segurança, dando prosseguimento ao programa europeu de pesquisa sobre liberdade e segurança na Europa (Challenge); e o LISS – Living in Surveillance Society, que trata de questões relativas à vigilância na vida cotidiana, sobretudo aquelas atreladas às tecnologias de informação e de comunicação.
O MEDIALAB/Sciences Po, dirigido por Bruno Latour e Dominique Boullier, é um laboratório inspirado na estrutura criada pelo Medialab do Massachusetts Institute of Technology (MIT) de Cambridge, mas com propósitos específicos, não sendo uma réplica deste último. Trata-se de um laboratório de mídias digitais voltado para os meios de comunicação e de produção de dados engendrados pelas novas tecnologias de informação e de comunicação (NTIC). Estabelecendo conexões entre as novas tecnologias, a pesquisa e o ensino, o MEDIALAB/Sciences Po encontra a sua particularidade na renovação profunda da pesquisa em ciências sociais e políticas, tanto dos seus métodos de trabalho como das abordagens de seus objetos. Esta renovação tem como eixo central as transformações recentes desencadeadas pelas novas tecnologias de informação e de comunicação, especialmente aquelas relativas às capacidades e monitoramento e rastreamento de dados sobre opiniões, atitudes, trajetórias no ciberespaço. Nas palavras de Bruno Latour, diretor do MEDIALAB/Sciences Po, tais tecnologias abriram a possibilidade de “traçabilité du social”, o que se configura numa valiosa oportunidade de renovação dos aportes teóricos e sobretudo metodológicos das ciências sociais, possibilitando a criação de métodos “quali-quantitativos”. Ainda segundo Latour, “depuis une quinzaine d'années, de très nombreuses autres formes de « traçabilité » ont vu le jour. Elles consistent pour l'essentiel à identifier la « trace » que les membres des sociétés développées laissent derrière eux par le simple fait d'utiliser une technique numérique quelconque. Les réservoirs de données ainsi disponibles sont immenses et largement inexploités. Ils remettent en cause la distinction entre agrégat et individu puisqu'il est possible de suivre quantitativement des carrières individuelles en très grand nombre. D'où l'expression de méthode ‘quali-quantitative’. Aucun des secteurs de l'enseignement et de la recherche en sciences sociales ne peut aujourd'hui se passer de l'apprentissage et du développement de ces méthodes.”
É precisamente esta atenção às formas de monitoramento e rastreamento de dados sobre indivíduos, hábitos, interesses, comportamentos etc no ciberespaço, bem como a proposta de desenvolver metodologias “quali-quantitativas” de análise destes dados que mobilizou o meu interesse pelo Médialab/Sciences Po.
A participação nestes dois permitem conectar os estudos sobre vigilância e as tecnologias de comunicação e de informação, integrando dois campos de interesse das minhas pesquisas atuais. Veremos como tudo se passará a partir de setembro.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Lançamento em Campinas e Ciclo Seminários LABJOR



Dia 23/06, das 14:00 às 18:00 h na UNICAMP, participarão do I Ciclo de Seminários do Mestrado de em Divulgação Científica e Cultural/LABJOR os organizadores do livro "Vigilância e Visibilidade: espaço, tecnologia e identificação". Marta Kanashiro fará a coordenação do evento e do debate, Rodrigo Firmino fará a conferência "Vigilância, tecnologia, espaço e cidade: questões de segurança e controle no espaço urbano" e eu encerrarei o ciclo com a conferência "Máquinas de fazer ver, crer, prever: tecnologias, vigilâncias e visibilidades contemporâneas".
Mais tarde, a partir das 19 h, o livro será lançado na Livraria Café e Arte. Coordenadas abaixo.
Data: 23 de junho (próxima quarta)
a partir de 19h00
Local: CAFÉ E ARTE
Rua Maria Ferreira Antunes,06
Ponto de referência: Em frente a Praça do Coco
Barão Geraldo - Campinas - SP
CEP: 13084-180
tel: 19-3289 3861

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Entrevista Anonimato na Internet

Concedi uma entrevista para o Instituto Humanitas Unisinos sobre Anonimato na Internet. Disponibilizo a versão completa abaixo, já que a que consta no site do IHU foi editada, ainda que com poucos cortes. Ressalto o ótimo trabalho de entrevistas que o IHU tem feito, coisa cada vez mais rara no jornalismo.

IHU On-Line – O anonimato na internet é algo legítimo?
Sim, o anonimato na Internet é absolutamente legítimo. Tão legítimo quanto a privacidade e a liberdade de comunicação, informação e expressão. É importante ressaltar que, no caso da Internet, esses três aspectos estão entrelaçados e que a quebra do anonimato pode colocar em risco tanto a liberdade quanto a privacidade dos indivíduos e dos dados que hoje circulam na rede.
A discussão sobre a legitimidade do anonimato em esferas ou espaços públicos não é um privilegio da atualidade e marcou calorosas disputas na modernidade. Parte dessa discussão está atrelada à utopia de uma sociedade transparente, a qual tem muitas faces. Para citar uma delas, aquela que paradoxalmente constitui um dos lados mais “sombrios” do “Século das Luzes” é exatamente a que vai defender a ordem social intimamente atrelada a uma visibilidade total, à utopia política de um olhar vigilante. Um dos mais conhecidos projetos dessa utopia é o sonho panóptico de Jeremy Bentham. Conhecidos também são os temores que o anonimato despertou com o surgimento da vida urbana e das massas modernas. Toda uma polícia e uma política de identificação se constituiu na tentativa de distinguir os traços de uma identidade individual nos rostos e corpos indiferenciados e anônimos das multidões urbanas. Na contra-corrente desses processos, toda uma outra linhagem de pensadores e práticas defende o anonimato como um princípio fundamental para o pleno exercício da vida pública e da liberdade em coordenação com a proteção da vida privada. Não cabe retomar toda essa discussão aqui, mas aproveito para indicar um bom texto do Sérgio Amadeu, onde ele retoma parte desse debate moderno para discutir o problema na esfera pública interconectada que é a Internet (Amadeu, S. Redes cibernéticas e tecnologias do anonimato: confrontos na sociedade do controle).
Hoje tanto o temor do anonimato quanto uma tentativa de ampliar os sistemas de identificação ressurgem com a Internet, mas seguramente qualquer tentativa de quebrar o anonimato é muitíssimo mais perigosa para a sociedade do que a sua existência como princípio legítimo e aliado à privacidade e à liberdade.
IHU On-Line – E, em sua opinião, o anonimato na internet deve ser protegido?
Sim, deve ser protegido no sentido de garantido, assegurado, sem dúvida. Pois sem o anonimato, a Internet se torna um espaço de controle e de vigilância potencial. Como bem mostram vários estudos, entre os quais destaco os do Alexander Galloway (Protocol e The Exploit), nossas comunicações na rede são operadas por protocolos (como o TCP/IP), assim como deixam rastros que podem ser retraçados, o que implica a possibilidade do controle. Entretanto não há nesta mesma estrutura e na arquitetura da rede nada que exija o vínculo de tais rastros a indivíduos especificamente identificados. Ou seja, essa estrutura acolhe e assegura o anonimato, ainda que o número do IP possa ser rastreado. E isso deve ser mantido. Na verdade, a garantia do anonimato é o que, digamos, nos “protege” do controle e do vigilantismo na Internet.
IHU On-Line – Quem quer o anonimato na internet e por quê?
Se me permite, a pergunta deveria ser: quem não quer o anonimato e por quê? Digo isso pelo fato de a Internet ser, desde o seu surgimento até hoje, apesar de algumas tentativas pontuais contrárias, uma rede de comunicação distribuída baseada no anonimato. E, com essa estrutura, ela se tornou o que é hoje, uma rede fundamental e essencial em nossa vida social, política, econônica, cultural, cognitiva etc. Assim, devemos nos perguntar primeiramente quem quer que a Internet deixe der ser o que ela é e por quê? Segurança e interesses comerciais e corporativos são a base de boa parte dos argumentos recorrentes contra o anonimato na Internet. É plenamente legítima e necessária a defesa da segurança na Internet, mas não creio que esta seja inimiga do anonimato, ao contrário. Mesmo porque, em caso de crimes, a quebra do anonimato já está prevista e garantida pela lei.
Mas voltando à sua pergunta original, acho que há pelo menos dois níveis a serem considerados: um primeiro, mais “vital”, no sentido forte do termo, é que o anonimato é absolutamente necessário para indivíduos e grupos que vivem em regimes totalitários ou sob censura, para os quais muitas vezes se comunicar anonimamente é uma questão de sobrevivência muito concreta. Um segundo nível consiste não tanto ou apenas no anonimato em si, mas em uma série de outros processos que estão articulados a ele na Internet, a liberdade de comunicação e expressão, a privacidade, a possibilidade e abertura em se reinventar modelos de partilha de informação, conhecimento, bens etc.
IHU On-Line – Como você vê a relação da fama e do anonimato na internet?
Fama e anonimato convivem plenamente e profusamente na Internet, território absolutamente cambiante e marcado pela diversidade. Estamos falando agora não mais do anonimato, digamos, “estrutural” ou “arquitetural”, mas no desejo de as pessoas permanecerem anônimas ou conquistarem alguma fama. Por um lado, há um impulso e uma corrida pela fama muito presente em diversos domínios da rede, reproduzindo os ideais da cultura de massas com novas roupagens. Por outro lado, há dinâmicas colaborativas em que sistemas de reputação convivem com o anonimato dos participantes. E há, ainda, processos sociais, políticos, estéticos cujo “pathos” passa pelo anonimato. A mais recente e breve ‘mania’ que chamou a minha atenção neste sentido foi o Chatroulette, onde uma das grandes excitações, à diferença das redes sociais “entre amigos eleitos ou relativamente conhecidos”, é o encontro aleatório com o desconhecido, uma roleta de anônimos interconectados. Não sei se o Chatroulette vai vingar ou não para além de seu sucesso inicial, mas trata-se de um dispositivo interessantíssimo e é instigante imaginar esse processo coletivo de encontros aleatórios com o desconhecido.
IHU On-Line – Os engenheiros que viabilizaram a internet, fizeram isso pensando no anonimato. Para você, que história social da internet, enquanto mídia e a partir do anonimato intrínseco, criamos?
A pergunta é muito ampla e certamente não sou capaz de responder sem simplificações e sem deixar de fora uma série de elementos importantes. Para falar apenas de um ponto, eu diria que a história da Internet é marcada por uma extrema inventividade, uma grande capacidade de se desviar dos fins que lhes são propostos e isso desde seu início, em que se desviou dos fins estritamente militares e acadêmicos e desde então vem sendo apropriada de múltiplos modos e em muitas direções, constituindo modelos alternativos não apenas de comunicação, mas de produção e circulação da informação e do conhecimento, de sociabilidade, de ação política, social, cultural, assim como dinâmicas alternativas de mercado, trocas etc. É claro que essa inventividade não se dá num território de plena harmonia, mas num campo de embates e disputas cada vez mais acirrados em que concorrem também modelos centralizados, massificados, corporativos, conservadores etc. Mas de toda forma, na Internet esses embates são possíveis, enquanto nas mídias massivas as relações de força eram muito mais cristalizadas. E, voltando ao anonimato, toda essa inventividade que atravessa a história da Internet sem dúvida não se deve apenas ao anonimato mas a múltiplos fatores atuando de forma conjunta e extremamente complexa, mas creio que ela estaria muito ameaçada sem ele. Pois o que há de mais interessante é que ela não está encerrada e não pode ser explicada nem pelo gênio de alguns indivíduos, nem pela gestão de certas corporações, nem por ações de um pequeno número de centros. Embora haja tudo isso na rede (egos inflados, grandes corporações, centros), a inventividade que importa e que me parece mais efetiva na história da Internet é essa inventividade distribuída, coletiva, atrelada, entre outras coisas, às redes do anonimato.

domingo, 16 de maio de 2010

Vigilância e Visibilidade: espaço, tecnologia e identificação


Acaba de ser lançado o livro que organizei com Rodrigo Firmino e Marta Kanashiro: Vigilância e Visibilidade: espaço, tecnologia e identificação (Sulina, 2010). Vejam o release abaixo. Comunico em breve a data e o local do lançamento no Rio.


A Editora Sulina
apresenta
VIGILÂNCIA E VISIBILIDADE
Espaço, Tecnologia e Identificação
Orgs.
Fernanda Bruno, Marta Knashiro e Rodrigo Firmino
(Coleção Cibercultura)
Este livro parte de uma inquietação comum a diversos domínios de saber, de práticas sociais, de experiências e experimentações do espaço urbano, de produções midiáticas e artísticas: os parâmetros e limites segundo os quais estávamos habituados a ordenar o ver e o ser visto estão em trânsito. Ampliam-se e modificam-se as margens do visível, os modos de fazer ver, assim como os modos de ser visto. Desde o alto e da amplitude da “visão” dos satélites e tecnologias de geolocalização (GPS, GIS) até a visualização miniaturizada e individualizada das pequenas telas de celulares, palmtops e laptops, passando pelas câmeras de vídeo-vigilância cada vez mais presentes tanto nos espaços públicos quanto privados, ou ainda pelos discretos sensores e tecnologias que monitoram o espaço físico e o informacional, tornando sensíveis processos usualmente desapercebidos e criando o que se convencionou chamar de realidade ou espaço ampliados, assim como formas sutis de vigilância de dados.
Autores: André Lemos, Consuelo Lins, Danilo Doneda, David Lyon, David Murakami Wood, Fábio Duarte, Fernanda Bruno, Henrique Antoun, Hille Koskella, Marta Kanashiro, Maurício Lissovsky, Nelson Arteaga Botello, Paulo Vaz, Rafael Barreto de Castro, Rodrigo Firmino, Rosa Maria Leite Ribeiro Pedro, Teresa Bastos.
Capa: Letícia Lampert
Preço de Capa: R$ 38,00
Nº de páginas: 296
ISBN: 978-85-205-0553-3
Departamento editorial e divulgação: (51) 3019. 2102
http://www.editorasulina.com.br/detalhes.php?id=503
Editora Meridional/Sulina
www.editorasulina.com.br
Tel (51) 3311-4082
Fax (51) 3264-4194

domingo, 18 de abril de 2010

Sousveillance: makeup and camouflage

Logo após escrever o último post conheci este ótimo trabalho do Adam Harvey no campo da sousveillance (contra-vigilância). Uma série de projetos que driblam os sistemas de reconhecimento de face embutidos na vídeo-vigilância. Abaixo, o projeto de desenvolvimento de padrões de maquiagem capazes de enganar as câmeras e, em seguida, camuflagens baseadas em subversões dos algoritmos que operam reconhecimento de face.

domingo, 11 de abril de 2010

Intelligent Video Surveillance (I): o infra-individual e o controle


Uma das questões recorrentes acerca das sociedades de controle e das formas de vigilância que lhes são próprias, consiste nas possibilidades de subjetivação aí em jogo, uma vez que um aspecto do controle como regime de poder característico das sociedades contemporâneas é sua atuação e investimento no âmbito do que proponho chamar de "infra-individual", isto é, em "alvos" ou "targets", para usar uma terminologia comum no marketing, que não consistem no indivíduo enquanto totalidade, unidade ou interioridade, mas sim em ações, comportamentos, ritmos, movimentos, traços parciais - corporais, informacionais etc - que podem inclusive estar desvinculados, na sua base, de formas de identificação dos indivíduos que os originam.
Com essa questão no horizonte, resolvi explorar um dispositivo de vigilância relativamente "novo", que já me inquietava fazia algum tempo - a vídeo-vigilância inteligente -, que atualiza essa dimensão infra-individual do controle.
Esta exploração resultou num texto "A Brief Cartography of Smart cameras: proactive surveillance and control" que será publicado como capítulo do livro ICTs for Mobile and Ubiquitous Urban Infrastructures: Surveillance, Locative Media and Global Networks (Orgs. Rodrigo Firmino, Fábio Duarte e Clovis Ultramari) e numa conferência no Simpósio Internacional Identificación, Identidad y Vigilância en América Latina na UAEM, México (ver post). Reproduzo abaixo alguns trechos do meu texto e da conferência:

"O que é ou pretende ser a vídeo-vigilância inteligente? Este dispositivo é anunciado como uma nova “geração” da vídeo-vigilância que exerce modos de monitoramento automatizado do comportamento. Na maioria dos casos, pretende-se que tais câmeras reconheçam e diferenciem padrões regulares de conduta e ocupação do espaço, tidos como seguros, e padrões irregulares, categorizados como suspeitos, perigosos ou simplesmente não funcionais. As chamadas “smart cameras” ou “intelligent video surveillance” consistem em softwares que se adicionam às câmeras e filtram ou lêem em tempo real as imagens segundo algoritmos que ressaltam indivíduos, objetos, atitudes que devem ser o foco de atenção da “cena”, conforme as aplicações pré-definidas no sistema. Um corpo parado por um dado período de tempo muito próximo à faixa de segurança que antecede os trilhos de uma estação de metrô, por exemplo, deve ser automaticamente ressaltado no painel de vigilância de modo a possibilitar uma intervenção a tempo de impedir o possível salto mortal de um suicida potencial. O mesmo dispositivo pode ressaltar automaticamente na tela um objeto deixado na estação, indivíduos ou grupos de pessoas com comportamentos suspeitos, corpos se movimentando no contra-fluxo ou qualquer situação previamente categorizada como devendo ser destacada no campo atencional da máquina e/ou dos operadores de câmera. Nos termos técnicos:
Intelligent visual surveillance systems deal with the real-time monitoring of persistent and transient objects within a specific environment. The primary aims of these systems are to provide an automatic interpretation of scenes and to understand and predict the actions and interactions of the observed objects based on the information acquired by sensors. (Intelligent distributed video surveillance systems, Sergio A. Velastin, Paolo Remagnino, Institution of Electrical Engineers, 2006, p. 1)"
"Nesta delegação perceptiva e atencional são definidos e reiterados não apenas parâmetros técnicos e administrativos de eficiência, mas também parâmetros de visibilidade, vigilância e controle do espaço e do comportamento humano. É precisamente o que nos interessa destacar: tais sistemas evidenciam o que se define hoje como devendo ser visível e notável no campo da vigilância.
Num contexto de excesso de imagens e escassez de atenção, que é o caso dos operadores de vídeo-vigilância, mas também o das sociedades contemporâneas em geral, é preciso filtrar o que é relevante. Nestes sistemas, só vale ser visto, já está claro, o que é irregular, não usual.
Mas é preciso lembrar: o irregular é índice de ameaça ou suspeita, eis porque ele deve ocupar a frente da cena. Mais ainda: a irregularidade em questão não se confunde mais com os focos dos regimes de visibilidade disciplinares, que liam sob o desvio comportamental, uma alma anormal. Aqui, o desvio comportamental é índice de um risco iminente, de uma ação indesejada ou ameaçadora, não importando tanto as motivações ou traços psicológicos que subjazem à ação.
Claro que essa tarefa de flagrar irregularidades ou mesmo de antecipá-las, já está presente na vídeo-vigilância convencional e em outras formas de inspeção humana ou maquínica. Entretanto, neste caso, a atenção ao irregular já está incorporada à própria máquina de visão, tornando mais explícito o tipo de ordenação do visível aí presente, uma ordenação sob a ótica da suspeita, e que pretende se antecipar aos próprios eventos (...)
Ora, diferentemente da escala ótica disciplinar, os sistemas de vídeo-vigilância inteligentes colocam em cena uma observação do cotidiano que rastreia os corpos e os espaços por um movimento de varredura que não se preocupa tanto nem com a minúcia do detalhe nem com a objetivação das diferenças individuais que permitam ver através dos gestos, atividades e desempenhos, uma interioridade não menos rica em detalhes.
Trata-se de um olhar algorítmico menos atento aos detalhes e profundidades do que aos padrões de superfícies e movimentos dos corpos, os quais são apreendidos mais em seus contornos gerais do que em sua individualidade. Certos softwares utilizam, inclusive, o termo “silhouete” para designar os padrões correspondentes a determinados movimentos corporais."
"Nos encaminhamos para um segundo aspecto que pretendo destacar nestes sistemas: o foco de observação é menos a identificação dos indivíduos do que as suas ações e comportamentos; mais do que o agente, focaliza-se a ação. Num mundo altamente institucionalizado e mediado como o nosso, os mecanismos de controle, no lugar de focalizarem os suportes de uma consciência que sustenta a ação, se organizam em torno da própria ação (Lianos, 2008).
Vejam o que diz o pesquisador James W. Davis, responsável pela construção de um sistema de "intelligent video" voltado para análise de comportamento e antecipação de situações que possibilitem perseguir automaticamente um alvo suspeito, alem de incluir visão de 360O (fish-eye lens) e imagem de alta resolução:
We care what you do, not who you are. We aim to analyze and model the behavior patterns of people and vehicles moving through the scene, rather than attempting to determine the identity of people. ”
We are trying to automatically learn what typical activity patterns exist in the monitored area, and then have the system look for atypical patterns that may signal a person of interest -- perhaps someone engaging in nefarious behavior or a person in need of help”.
As smart cameras e seus sensores encarnam um tipo de poder e conhecimento sobre corpos, comportamentos e modos de habitação do espaço, que os monitora à distância, transformando em informação suas ações no espaço físico. Essas informações permitirão extrair padrões do que seriam as condutas regulares e do que seriam as condutas irregulares. Tais padrões devem, contudo, possibilitar intervenções, planejamentos, cálculos seja no campo da vigilância e da segurança, detectando comportamentos suspeitos, prevendo e prevenindo riscos, seja no campo da gestão, do consumo ou da ordenação dos corpos e seus fluxos, provendo esse espaço de informações que induzam trajetórias, capturem a atenção, mobilizem ações e interesses. A intelligent video surveillance, em certa medida, vai de par com os ambientes ditos inteligentes, que adicionam ao espaço camadas informacionais, ampliando as suas possibilidades de interação com os corpos presentes e permitindo que estes sejam interpelados de forma contextual pelo próprio ambiente em seu entorno. Nos termos de Manovich (2006),
By tracking the userstheir mood, pattern of work, focus of attention, interests, and so onthese interfaces acquire information about the users, which they then use to automatically perform the tasks for them. The close connection between surveillance/monitoring and assistance/augmentation is one of the key characteristics of the high-tech society.""

Referência dos trechos reproduzidos acima:
Bruno, Fernanda. A Brief Cartography of Smart cameras: proactive surveillance and control. In: Firmino, R; Duarte, F.; Ultramari, C. (Orgs). ICTs for Mobile and Ubiquitous Urban Infrastructures: Surveillance, Locative Media and Global Networks. IGI Book, 2010 (no prelo).