Cogitamus: six lettres sur les humanités scientifiques é o mais recente livro de Bruno Latour. Trata-se de um livro epistolar: seis cartas resumem um curso de Humanités Scientifiques (Sciences Po) para uma estudante alemã, que não pôde acompanhar as aulas, mas que o provoca com uma inquietação a respeito dos embates envolvidos na Convenção sobre mudanças climáticas em Copenhague.
Comecei a leitura ontem e ao que consta em sua contra-capa, o livro pretende ser uma introdução, para um público mais amplo, ao estranho domínio das "humanidades científicas" (Humanités Scientifiques). Não traz, assim, maiores novidades em relação a livros anteriores, mas reapresenta, agora num contexto de formação, conceitos e idéias já formulados. O que os faz operar de modo mais claro e ágil, além de aproximarem o leitor das pistas, obstáculos e decisões metodológicas da pesquisa que o autor realiza e ensina. Nesse sentido, os conceitos e idéias aparecem neste livro numa outra "escala ótica", não usual, mais próxima do que seria o cotidiano do pensamento, da pesquisa e do ensino. O que afinal faz todo sentido, considerando a "matéria" do livro.
Deixo aqui as minhas notas sobre a primeira carta:
Como definir um curso, e este curso em particular, que trata de algo tão pouco disciplinar como "humanidades científicas", um domínio que nem existe de fato? Por negação, primeiro, o curso não trata de ciências e tecnologias simplesmente, mas sim de suas relações com a história, a cultura, a literatura, a economia, a política. Seu objetivo é colocar em questão a idéia de autonomia das ciências e das técnicas (aqui reencontramos o conhecido programa da sociologia das ciências) e o foco que interessa neste questionamento é precisamente aquele que bascula as fronteiras das ciências e tecnologias com a política. Para mostrar as associações entre esses domínios, Latour retoma o discurso de Plutarco sobre o papel de Arquimedes no cerco dos romanos a Siracusa, já comentado em outros textos seus. A bela análise do autor/professor mostra como, malgrado a denegação do próprio Plutarco (que, após ter mostrado o quanto se cruzam os interesses e ações de Arquimedes e do rei, acaba por manter o primeiro como um cientista puro e desinteressado das questões mundanas), um encadeamento de traduções, desvios e composições mistura o mundo da geometria de Arquimedes e o mundo da geopolítica o rei de Siracusa, a quem o primeiro oferece uma "solução" técnica (o sistema de roldanas, que por sua vez traduzia uma expressão geométrica) para um problema político (o assalto dos poderosos e numerosos romanos a Siracusa). "Dêem-me um ponto fixo que erguerei o mundo". Inversão das relações forças: entre um velho sábio e um exército; entre um império e uma pequena cidade. E também "passagem", trânsito, composição entre o mundo da ciência e o mundo político, entre a geometria e a geopolítica: domínios antes estranhos um ao outro tornam-se comensuráves (ainda que o discurso científico e político convencionais voltem a torná-los aparentemente incomensuráveis, como faz Plutarco).
Tradução, desvio e composicão: eis os três conceitos centrais do curso-livro. Conceitos que operarão a substituição da metáfora do corte entre as ciências e a política (e o resto da existência) pela metáfora dos liames sucessivos entre eles. Traduzir é transportar transformando: transcrever, transpor, deslocar. Daí a importância do desvio, pois toda tradução implica um desvio, a instauração de uma ambigüidade na ação, idéia, conceito, interesse do 'outro'. Deste modo, toda ação, criação, ciência é composta de uma série de desvios em que práticas, interesses, conhecimentos de diversos campos (científico, político, econômico etc) se afetam reciprocamente. A proposta do curso, tratar das humanidades científicas, é seguir esses cursos de ação, as traduções e desvios nele implicados, e suas composições, pois "l'action est toujours composée et la somme de cette composition est toujours ambiguë". E ainda, retomando o caso de Arquimedes: "Voyez pourquoi je parle de composition: au final, l'action est tissée par ces enchaînements et ressemble à un feuilleté de préoccupations, de pratiques, de langues différentes - celles de la guerre, de la géométrie, de la philosophie, de la politique." As ciências e tecnologias, longe de serem um domínio autônomo, são mais ou menos interessantes conforme a sua aptidão a se ligar a outros cursos de ação. Interessante aqui reconduz a uma outra noção cara a Latour: a noção de interesse ou mais precisamente de "intéressement". A aptidão a se ligar a outros cursos de ação consiste na aptidão a interessar, lembrando que a origem latina da palavra interesse designa aquilo que se coloca entre duas coisas "inter-esse". Seguir os cursos sinuosos dos encadeamentos de traduções, interesses, desvios e composições é o que se propõe no estudo das "humanidades científicas". Estudo que deve ter em mente que no fim de cada trajetória jamais encontrará "a ciência", "a sociedade" ou "a política" como domínios de fronteiras nítidas e histórias particulares, mas, antes, redes de ações coletivas.
Como definir um curso, e este curso em particular, que trata de algo tão pouco disciplinar como "humanidades científicas", um domínio que nem existe de fato? Por negação, primeiro, o curso não trata de ciências e tecnologias simplesmente, mas sim de suas relações com a história, a cultura, a literatura, a economia, a política. Seu objetivo é colocar em questão a idéia de autonomia das ciências e das técnicas (aqui reencontramos o conhecido programa da sociologia das ciências) e o foco que interessa neste questionamento é precisamente aquele que bascula as fronteiras das ciências e tecnologias com a política. Para mostrar as associações entre esses domínios, Latour retoma o discurso de Plutarco sobre o papel de Arquimedes no cerco dos romanos a Siracusa, já comentado em outros textos seus. A bela análise do autor/professor mostra como, malgrado a denegação do próprio Plutarco (que, após ter mostrado o quanto se cruzam os interesses e ações de Arquimedes e do rei, acaba por manter o primeiro como um cientista puro e desinteressado das questões mundanas), um encadeamento de traduções, desvios e composições mistura o mundo da geometria de Arquimedes e o mundo da geopolítica o rei de Siracusa, a quem o primeiro oferece uma "solução" técnica (o sistema de roldanas, que por sua vez traduzia uma expressão geométrica) para um problema político (o assalto dos poderosos e numerosos romanos a Siracusa). "Dêem-me um ponto fixo que erguerei o mundo". Inversão das relações forças: entre um velho sábio e um exército; entre um império e uma pequena cidade. E também "passagem", trânsito, composição entre o mundo da ciência e o mundo político, entre a geometria e a geopolítica: domínios antes estranhos um ao outro tornam-se comensuráves (ainda que o discurso científico e político convencionais voltem a torná-los aparentemente incomensuráveis, como faz Plutarco).
Tradução, desvio e composicão: eis os três conceitos centrais do curso-livro. Conceitos que operarão a substituição da metáfora do corte entre as ciências e a política (e o resto da existência) pela metáfora dos liames sucessivos entre eles. Traduzir é transportar transformando: transcrever, transpor, deslocar. Daí a importância do desvio, pois toda tradução implica um desvio, a instauração de uma ambigüidade na ação, idéia, conceito, interesse do 'outro'. Deste modo, toda ação, criação, ciência é composta de uma série de desvios em que práticas, interesses, conhecimentos de diversos campos (científico, político, econômico etc) se afetam reciprocamente. A proposta do curso, tratar das humanidades científicas, é seguir esses cursos de ação, as traduções e desvios nele implicados, e suas composições, pois "l'action est toujours composée et la somme de cette composition est toujours ambiguë". E ainda, retomando o caso de Arquimedes: "Voyez pourquoi je parle de composition: au final, l'action est tissée par ces enchaînements et ressemble à un feuilleté de préoccupations, de pratiques, de langues différentes - celles de la guerre, de la géométrie, de la philosophie, de la politique." As ciências e tecnologias, longe de serem um domínio autônomo, são mais ou menos interessantes conforme a sua aptidão a se ligar a outros cursos de ação. Interessante aqui reconduz a uma outra noção cara a Latour: a noção de interesse ou mais precisamente de "intéressement". A aptidão a se ligar a outros cursos de ação consiste na aptidão a interessar, lembrando que a origem latina da palavra interesse designa aquilo que se coloca entre duas coisas "inter-esse". Seguir os cursos sinuosos dos encadeamentos de traduções, interesses, desvios e composições é o que se propõe no estudo das "humanidades científicas". Estudo que deve ter em mente que no fim de cada trajetória jamais encontrará "a ciência", "a sociedade" ou "a política" como domínios de fronteiras nítidas e histórias particulares, mas, antes, redes de ações coletivas.
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