Post do Polis + Arte chama atenção para uma das imagens que O Globo publicou na matéria sobre a prisão da esposa de Fernandinho Beira-Mar. Na foto comentada por Cezar Migliorin, aparece uma "outra acusada" com o rosto coberto e parte da sua calcinha flagrada no momento em que a mulher era retirada da traseira de um carro da polícia. A imagem em questão se coloca numa zona ética que oscila entre o paparazzo da revista de fofoca e a intimidação policial, aliando punição e voyeurismo. Nas palavras de Migliorin:
Se ela será condenada ou não é secundário. O que interessa é punir com espetáculo.
"É sempre perturbador ver o lugar em que se coloca o jornalista que faz uma escolha como esta. Incorpora uma mistura de editor de site erótico com página policial e Revista Caras. Tudo feito com muita prepotência e desrespeito.
Enquanto a acusada cobre o rosto o jornal mostra sua calcinha, fazendo a punição retornar ao corpo, não como suplício mas como humilhação que passa pela imagem."
Vou forçar um pouco mais a comparação com o suplício para levantar uma questão. Um dos aspectos interessantes da análise que Foucault faz de toda a atrocidade presente no suplício reside nas desordens e desarranjos que lhe são inerentes. Ainda que o corpo supliciado fosse reduzido a uma técnica quantitativa da dor e das sensações insuportáveis que alimentavam e garantiam o espetáculo e a glória do poder, uma margem mínima de resistência ainda lhe restava: blasfemar e maldizer, ao abrigo da morte, os juízes, o poder, as leis, a religião. Ao condenado que não tem mais nada a perder, o suplício permite essas "saturnais de um instante em que nada mais é proibido nem punível". Mas a maior desordem e resistência provinha do corpo da multidão e do povo, principal personagem do suplício, e no qual muitas vezes reverberava a fala do supliciado, invertendo os efeitos previstos. Diz Foucault: "há nessas execuções, que só deveriam mostrar o poder aterrorizante do príncipe, todo um aspecto de carnaval em que os papéis são invertidos, os poderes ridicularizados...para o povo que aí está e olha, sempre existe, mesmo na mais extremada vingança do soberano, pretexto para uma revanche..." Ou ainda para se reforçar a solidariedade do povo com os supliciados, o que era o maior perigo político para o poder e que acabou sendo uma das causas do desaparecimento do suplício.
Mas todo esse recuo é para colocar uma questão. No suplício, o corpo pode resistir pela blasfêmia ao abrigo da morte ou pela revanche da multidão à beira do cadafalso. A questão aqui é: Como o corpo pode resistir a uma imagem?
2 comentários:
O primeiro impulso é dizer, o corpo não resiste, ele é apenas submetido, o que significaria então dizer que o espetáculo está apenas a submeter os corpos, é dúvida.
No momento que a coloquei no blog, por exemplo, fiquei na maior dúvida se deveria colocá-la, fazê-la circular, ou apenas descreve-la. A imagem de alguém que esconde o rosto já é em si muito agressiva, mas isso é uma banalidade no jornalismo né? Assim, essa imagem é na verdade duplamente invasiva.
Outra coisa é que no caso dessa mulher, ela tem algo a perder, por isso ela esconde o rosto. Ao esconder o rosto a imagem se torna ainda mais voyeristica, mas, ao fazê-lo ela abre mão se impor ao poder que a subjuga, não? Ao esconder o rosto ela se torna um corpo desubjetivado, justamente o que era desejado pelo suplício mas não alcançado no momento que as palavras dos acusados repercutiam nos espectadores.
Ao cobrir o rosto ela elimina justamente "comunicabilidade", ou seja, a possibilidade de ser outra coisa que não a "acusada" como pretende a matéria. "A revelação do rosto é a revelação da linguagem mesmo", Agamben. O gesto dela, nesse sentido, é de se retirar do lugar da linguagem, logo, da política e da demanda de um lugar de enunciação nessa imagem.
No caso dessa imagem é difícil imaginar uma repercussão nos espectadores, é difícil imaginar que aquele que está submetido e se auto-submete possa fazer ecoar alguma coisa.
Mas, voltando a tua pergunta: talvez o corpo que possa resistir não seja propriamente o dela, da pessoa que está na imagem, mas a nossa capacidade de montar, de reintroduzir essa imagem em um circuito em que o corpo que a produziu exista, que os consumidores existam, tentando desfazer a cumplicidade que nos demanda essa imagem.
pano pra manga...
beijos
Caro Cezar,
um prazer ler a sua resposta. Quando te coloquei a questão eu estava confinada ao que vc apontou no seu primeiro impulso, a ver nessa e em muitas imagens similares apenas o espetáculo subjugando os corpos. Claro que isso se dá e que ao corpo exposto na imagem não sobra margem possível de ser e dizer outra coisa além do que requerem aqueles que a produziram. A resistência sempre se dá nessa margem de possível em que um corpo, um desejo, uma idéia, uma imagem pode ser outra coisa além daquilo que requer o poder que a produz. Quando o possível é sufocado, a resistência é tb anulada e o poder se transforma em violência, diz Foucault. Mas enquanto houver possível, há poder, mas há também resistência em potência. Nessa imagem (e em muitas outras que o jornalismo produz sobre os criminosos e suspeitos no Rio) essa margem é reduzida ao mínimo e ela chega muito perto da violência. Mas como você aponta, a resistência aqui é possível pela reintrodução dessa imagem em outros circuitos em que outras reações, afetos, corpos e sentidos se dêem, contra a cumplicidade.
Tenho pensado nessas questões diante das imagens de vigilância e de voyeurismo. Tentando entender quando, no plano da imagem e tb da relação com o mundo, ver se torna vigiar; quando e como a imagem nos coloca na condição de voyeurs ou vigias; e aí quais são as formas e graus possíveis de vigilância e voyeurismo, bem como as margens possíveis de deslocar essa "condição espectatorial" que nos é demandada.
sim, pano pra manga, seguimos costurando as idéias.
beijos gratos,
Fernanda
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