Já no peúltimo dia no MaM/Rio, fui ver a exposição da Sophie Calle (Cuide de Você). Para quem não viu, a "pedra de toque" da exposição é um e-mail de ruptura amorosa escrito por "X", ex-namorado da artista. A partir desta carta, S. Calle cria mais um dos seus dispositivos a um só tempo artístico e terapêutico. Este é, ainda, especialmente feminino e vinga com humor o abandono chamando 107 mulheres para interpretar a carta, segundo seus talentos ou profissões: tradutora, filóloga, psiquiatra, atiradora, atriz, crimonologista, bailarina, juíza, musicista, cabalista, diplomata, vidente, mãe, muitas outras, e mesmo uma papagaia.
"J' ai reçu un mail de rupture. Je n'ai pas su répondre. C'était comme s'il ne m'était pas destiné. Il se terminait par ces mots : Prenez soin de vous. J'ai pris cette recommandation au pied de la lettre.J'ai demandé à cent sept femmes - dont une à plumes et deux en bois -, choisies pour leur métier, leur talento, d'interpréter la lettre sous un angle professionnel. L'analyser, la commenter, la jouer, la danser, la chanter. La disséquer. L'épuiser. Comprendre pour moi. Parler à ma place. Une façon de prendre le temps de rompre. A mon rythme. Prendre soin de moi."
Tomar ao pé da letra o cuidado de si é, no dispositivo de Calle, fazer circular a palavra, coletivizar a hermenêutica arrancando-a do retorno sobre si para dotá-la de um outro movimento, voltado para fora e para muitos, para outrem. Ao ponto que, ao final, a letra original implode por excesso de interpretação. No fim da exposição, mesmo antes, pouco importa o que escreveu X, pouco importa X; as versões, traduções, traições, reações, revisões, dissecções do seu texto interessam tão mais que sua forma e conteúdo originais!
O apagamento da dor e do amor perdido é o apagamento do próprio texto de X; vingança sob medida em se tratando de um escritor. Melhor que "deletar", queimar ou responder eloquentemente é oferecer o texto de X à sobre-interpretação pública, feminina e profissional - não há dor, amor, escritor que resista a um tal dispositivo. Em certos momentos, o dispositivo vai além do humor, franqueando de forma inquietante o limite da exposição do outro, e é o cômico (em sua face ridícula, no sentido que lhe atribui Aristóteles) que vige sobre X e sua carta.
Esse destino do texto (e aqui já saio um pouco da exposição ou nela abro parênteses) é o destino e o risco de toda escrita, como indica a bela leitura que Derrida faz do Fedro de Platão: a palavra escrita perde seu detentor, seu defensor, seu pai, arrisca afastar-se da verdade (no sentido platônico) e vagar por toda parte, sujeita a sentidos diversos. A escrita também é um phármakon, um artifício a um só tempo remédio e veneno, que vem em auxílio da memória, mas que a trai e a enfraquece, favorecendo a rememoração em detrimento da reminiscência (via régia do conhecimento verdadeiro para Platão). E agora enquanto escrevo me dou conta que a minha lembrança do Fedro tem ainda um outro sentido que a conecta com a exposição, uma vez que neste diálogo o problema da escrita é intimamente atrelado à questão "o que é o amor?".
Seguindo o fio das associações despertadas por Calle e retomando o que acho mais interessante neste e em outros trabalhos da artista (como o Douleur Exquise, muito mais belo): a expiação da dor pela multiplicação dos lugares de fala, pela passagem do individual ao coletivo, do dentro ao fora, do eu ao muitos ou a outrem. Estamos próximos aqui do sentido que Nietzsche quer potencializar na dor - não o sentido interno e íntimo, consequência de um erro confinado numa interioridade voraz, mas o sentido externo, ativo, em que "a dor não é um argumento contra a vida, mas, ao contrário, um excitante da vida, 'uma isca para a vida', um argumento em seu favor". (Deleuze, G. Nietzsche e a Filosofia).