domingo, 7 de fevereiro de 2010

Culpado pelo cérebro


Bom, a culpa tem uma bela e conhecida trajetória na história ocidental - da matriz judaico-cristã ao ideal ascético da metafísica, como nos ensina a melhor genealogia da culpa: "Esse homem que, por falta de inimigos e resistências exteriores, cerrado numa opressiva estreiteza e regularidade de costumes, impacientemente lacerou, perseguiu, corroeu, espicaçou, maltratou a si mesmo, esse animal que querem 'amansar', que se fere nas barras da própria jaula, este ser carente, consumido pela nostalgia do ermo, que a si mesmo teve de se converter em aventura, câmara de tortura, insegura e perigosa mata - esse tolo, esse prisioneiro presa da ânsia e do desespero tornou-se o inventor da 'má consciência'" (Nietzsche, A genelogia da moral).
Mais tarde, engrossam o caldo da má consciência todo um rol de saberes "psi", juntamente com todo um conjunto de práticas burguesas e institucionais. A culpa torna-se o afeto por excelência da subjetividade moderna.
Ao lado e cruzando a dimensão subjetiva e afetiva da culpabilidade, um outro percurso, de ordem jurídica e biológica, a inscreve não apenas nos atos e nos fatos, mas nos corpos dos indivíduos. Desde a antropologia criminal de Lombroso, que associava traços físicos e fisionômicos a almas criminosas, até os catálogos de dedos e orelhas de Bertillon (que faziam da medida antropométrica um instrumento de identificação criminal), passando pelo polígrafo (vulgo detector de mentiras) e laudos psiquiátricos, a aliança entre o jurídico, o tecnológico e o biológico não cessa de se sofisticar na busca de provas corporais da culpa.
A última novidade de que tomei conhecimento vem de recentes investimentos de um ramo das neurociências na busca por evidências cerebrais da culpa criminal. Os termos são assustadores e ressoam as mais distópicas ficções, mas vêm ganhando cada vez mais realidade nos últimos anos (vejam essa matéria). "Brain fingerprint" e "brain electrical oscillations signature" são algumas das técnicas que buscam ler ou visualizar no cérebro provas de culpa, lembrando a mais reacionária frenologia. A "brain fingerprint" visa detectar, por exemplo, um tipo memória que apenas culpados teriam. Para mais detalhes desse gênero de pesquisa, vejam o artigo "Neurolaw".
Tais evidências cerebrais fazem parte de uma série de pesquisas com aplicações as mais diversas, da criminologia ao marketing (via neuromarketing), que supõem que o cérebro não mente, ou ainda, que ele detém mais conhecimento sobre o eu (suas inclinações, preferências, traços de personalidade, registros mnemônicos) do que o seu portador. Esta perspectiva aposta no declínio da subjetividade psicológica, narrativa e hermenêutica, cuja "verdade" implica colocar a si mesmo em discurso e se oferecer a uma cadeia de interpretações que passa pelo outro (o terapeuta, o psicanalista), mas cujo sentido implica necessariamente a enunciação de si e a linguagem. Sim, a culpa moderna encontrou aí (nessa subjetividade interiorizada e hermenêutica) uma sede privilegiada, mas esta subjetividade não se esgotou no circuito da culpabilidade e produziu sentidos, modos de vida que abriram brechas no modelo confessional e na má consciência, sobretudo a partir dos anos 1960.
O espantoso nessa nova técnica de culpabilidade cerebral é que, ao confiscar a linguagem, ela aliena o sujeito tanto de si mesmo quanto do processo que decide a sua vida, tornando-o impotente frente à evidência cerebral cujo saber reside inteiramente no outro.

Um comentário:

Leonardo Velasco disse...

Excelente post!

As neurociências cada vez mais buscando espaço na mídia para suas "descobertas" e proliferando mais formas de subjetividade. Adorei o link com Lombroso e a frenologia. Hoje a gente ri de Lombroso, mas será que no futuro haverá risadas ou apatia?

Beijo!