Recentemente, a prefeitura de Vitória da Conquista, Bahia, anunciou que os uniformes escolares da rede municipal seriam monitorados por etiquetas de rádio-frequência, de modo a notificar automaticamente os pais dos alunos no caso de ausência. Conform a matéria no site da prefeitura: "As escolas municipais de Vitória da Conquista são as primeiras do Brasil a adotar o fardamento que facilita a comunicação entre as unidades de ensino e as famílias". A revista ComCiência do Labjor/Unicamp me entrevistou numa matéria sobre o tema. Reproduzo a entrevista na íntegra.
1. ComCiência: Qual a sua opinião sobre este fato?
Fernanda Bruno: O fato merece discussão. Na realidade, o uso de etiquetas RFID em uniformes escolares vem ampliar a presença crescente de tecnologias de vigilância e controle nas escolas. Projetos de lei requerem câmeras de vigilância em creches e escolas públicas. No setor privado, há creches que oferecem, entre suas “qualidades e serviços”, o uso de vídeo-vigilância com transmissão direta aos pais. Fora do Brasil, no Reino Unido por exemplo, já há experiências-piloto com uso de rfid em uniformes escolares.
Todos sabemos que a escola tradicionalmente utiliza uma série de técnicas e procedimentos para controlar seja o comportamento, seja a presença, seja o tempo, seja o desempenho dos alunos: inspetores, cadernetas, avaliações, campainhas, filas, exercícios. Estes procedimentos já estiveram inseridos num projeto disciplinar que orientou boa parte da pedagogia escolar durante anos. A escola vem passando por uma série de reformas e crises em todo o mundo e uma questão que eu endereçaria às instituições escolares é acerca do projeto educacional que sustenta tais medidas. Esta questão me parece importante porque, ao menos no material publicitário e jornalístico sobre o tema, tais dispositivos são em geral tratados como instrumentos neutros sem qualquer efeito além daqueles previstos pelas “boas intenções” de seus mestres. Assim, além de não se problematizar o vínculo histórico desses dispositivos com mecanismos policiais e/ou militares, não se pergunta sobre o sentido da presença desse gênero de dispositivo na escola. No caso da segurança pública por exemplo, ainda que o uso de câmeras de vigilância também seja questionável, temos alguma idéia acerca do projeto (no caso, de segurança) no qual eles estão inseridos. Mas qual é o projeto pedagógico que justifica inserir tais dispositivos na escola? A pergunta é tão mais relevante quando se pretende com isso “resolver” questões relativas ao comportamento, à presença, à relação da escola com os pais, entre outras. Por exemplo, qual é o sentido educacional e pedagógico de se utilizar câmeras de vigilância como instrumento disciplinar, visando coibir atos de vandalismo ou violência na escola? Por que a escola vê neste dispositivo um método mais interessante – do ponto de vista educacional – do que outros meios tradicionalmente usados? Essas questões indicam a necessidade de haver uma reflexão no plano educacional, pedagógico e não apenas num suposto – e inexistente – plano puramente técnico. É preciso sempre lembrar que esses planos – técnico e educacional – não estão jamais separados e devem ser pensados em suas interseções.
2. ComCiência: Quais os problemas de se tentar controlar a evasão escolar ou "facilitar a comunicação" entre escolas e pais colocando um código de barras nos uniformes dos alunos?
Fernanda Bruno: Considerando a questão específica dos chamados “uniformes inteligentes” com indentificação por radiofrequência (RFID), há também uma série de problemas em jogo. Vou me concentrar em apenas um deles, destacado nas matérias que li sobre o tema e retomado na sua pergunta. Um dos argumentos centrais de justificativa deste sistema é o de que as etiquetas RFID no uniforme possibilitariam, além de um controle mais efetivo da frequência dos alunos, uma melhor comunicação entre a escola e os pais que, segundo o site da prefeitura de Vitória da Conquista, poderão acompanhar melhor o dia a dia dos filhos na escola. O chip envia automaticamente uma mensagem ao pai informando que o aluno entrou na escola ou não, caso o aluno não passe pelo sensor até 20 minutos após o horário de entrada.
Uma primeira questão, mais evidente, é se este sistema de controle é de fato o melhor meio, em termos educacionais, de garantir a frequencia dos alunos na escola. Tenho sérias dúvidas quanto a isso e me parece que outras medidas, anunciadas no mesmo site da prefeitura – como transporte escolar gratuito e universalizado, merenda escolar bem cuidada, bom plano de carreira para os professores – sejam mais interessantes em diversos sentidos.
Mas o ponto que gostaria de discutir é outro, o da facilitação da comunicação, ou “interação” entre a família e a unidade escolar, para retomar os termos usados pelo site da prefeitura. Parece-me bastante problemático estender aos pais, em tempo real e de forma automatizada, a função de controlar a entrada e permanência dos alunos na escola. Certamente, a escola deve se comunicar com os pais seja em caso de falta, seja no caso de qualquer outro problema relativo ao aluno. Mas o “filtro” da escola, como instituição responsável pela educação escolar, é fundamental. Ou seja, uma coisa é os pais receberem da escola um comunicado que é fruto de uma “leitura” ou uma perspectiva desta instituição acerca de uma ausência, um problema de rendimento, de comportamento, ou qualquer outra questão. Quero dizer que a mediação da escola nessa comunicação é fundamental. Todos sabemos que há muitas maneiras de se “matar aula”, algumas mais e outras menos preocupantes. Cabe à escola avaliar quando e porque deve comunicar algo aos pais e não delegar ao “uniforme inteligente” essa tarefa, que por sua vez, requer dos pais uma vigilância própria a inspetores escolares. Quando o uniforme informa automaticamente e em tempo real a ausência do aluno, quem está fazendo essa mediação é o RFID, requerendo que os pais ajam, em alguma medida, como inspetores escolares, o que é muito problemático. Além disso, a margem de negociação entre os alunos e a escola, margem fundamental para o processo educacional, diminui drasticamente. Comparemos com a caderneta, outro instrumento de controle da frequencia escolar, do comportamento, do desempenho; e também meio de comunicação com os pais. Mas mesmo na disciplinar caderneta, já em desuso em diversas escolas devido à forte e problemática mistura de comunicação e controle nela implicada, ainda há tanto uma margem para a negociação entre o aluno e a escola (quantos de nós, educados em sistemas similares, não negociou com professores ou funcionários notificações na caderneta?), quanto a mediação da escola – o professor, o diretor, o funcionário – na comunicação com os pais. O uniforme inteligente dispensa essas duas vias de negociação e de mediação tão importantes. Algo similar se passa com as escolas infantis que colocam câmeras para que os pais possam acompanhar o dia a dia dos seus filhos e se assegurar de que eles estão sendo bem tratados pelos professores e funcionários. O discurso que busca legitimar essa prática vai desde a feliz oferta de “tudo ver” e “não perder nem um segundo da vida do seu filho” até a aterrorizante garantia de que o seu filho não está sedo maltratado na escola. Mais uma vez, é claro que a escola deve zelar pela segurança das crianças, assim como deve manter diálogo constante com os pais. Esses por sua vez, também precisam ter uma relação de confiança com a escola. Entretanto, não é por meio dessa promessa de “transparência” que essas relações serão garantidas. Confiar, inclusive, implica não ver tudo, não saber tudo, não controlar tudo. É no mínimo inquietante que pais e escolas queiram educar crianças dizendo a elas que só estarão seguras e bem cuidadas se forem todo o tempo controladas e visíveis.