Pelas mãos de Edward Snowden, chega aos nossos olhos e ouvidos o que talvez seja o maior vazamento envolvendo aparatos estatais de vigilância sobre governos e populações. Publiquei ontem no Prosa & Verso (O Globo) um artigo sobre o tema, reproduzido abaixo e também disponível no site do caderno.
Prosa & Verso, O Globo, 22.06.2013
Capacidade das empresas da internet de acumular informações sobre os usuários alimenta uma discussão que vai da segurança nacional a economia de dados
Por Fernanda Bruno
A imagem é familiar: na mira de aparatos de vigilância onipresentes, indivíduos têm cada uma de suas ações rastreadas e monitoradas por serviços secretos americanos. Perdemos a conta das vezes em que vimos tal cenário distópico nos filmes de Hollywood. A ficção nos habituou a uma imagem da vigilância estatal que a realidade vem, contudo, superar. Os recentes documentos divulgados pelo jornal britânico “The Guardian” mencionam um programa de vigilância da Agência Nacional de Segurança (NSA) dos Estados Unidos que, diferentemente da maior parte da ficção hollywoodiana, não se volta para alvos suspeitos ou culpados, mas para uma massa difusa de indivíduos e seus dados pessoais na Internet. Segundo os documentos, o programa PRISM permite que a NSA tenha acesso direto a servidores de grandes empresas da internet, sendo assim capaz de monitorar comportamentos de seus usuários em escala global. As empresas citadas — Microsoft, Yahoo, Google, Facebook, PalTalk, AOL, Skype, YouTube, Apple — fazem parte do cotidiano de bilhões de internautas e possuem dados extremamente sensíveis sobre seus hábitos, desejos e preferências em diversas esferas: pessoal, política, religiosa, econômica etc. Curiosamente, as redes digitais de comunicação distribuída, ditas pós-massivas, se tornam o território privilegiado da vigilância de massa.
Ainda que as declarações das instâncias envolvidas busquem minimizar o potencial de violação de direitos civis em jogo, o problema está posto. De fato, ele é apenas a face mais recente de uma série de ações e programas há muito em curso. Por parte do governo americano, desde os atentados de 11 de setembro de 2001, uma série de programas e leis vêm criando zonas de exceção que autorizam o monitoramento de dados e comunicações da população civil, sob a justificativa do combate ao terrorismo (Patrioct Act, 2001 e 2006; Waranteless Domestic Surveillance Program, 2001; Total Information Awareness Program, 2002; Foreign Intelligence Surveillance Court, 2007). Uma das peculiaridades do PRISM, ativo desde 2007, seria a sua aliança com as corporações privadas na internet, implicando uma mudança não só quantitativa, mas também qualitativa no acesso aos dados pessoais de internautas, uma vez que, segundo os documentos, a NSA teria acesso não simplesmente aos metadados das navegações (horário e local de conexão, por exemplo), mas também aos seus conteúdos (histórico de buscas, conteúdo de emails, transferência de arquivos etc).
Embora esta aliança seja até o momento negada em uníssono pelas empresas mencionadas, os documentos colocam em pauta uma lógica da vigilância cada vez mais comum ao Estado e ao setor privado. Um aspecto desta lógica está relacionado às promessas do chamado “Big Data”. O termo designa uma nova grandeza informacional que procede tanto do aumento da capacidade de estocagem como da emergência de um novo tipo de saber que tais volumes de dados gerariam. A suposição é a de que quantidades massivas de dados, submetidas a procedimentos algorítmicos apropriados, revelariam regras inscritas em suas correlações, permitindo projetar padrões de comportamento e intervir no curso das ações de inúmeros indivíduos, de modo a conjurá-las, quando indesejadas, ou incitá-las, se forem bem-vindas. Trata-se de um modelo polivalente. Pode-se extrair, por exemplo, padrões de intenções de voto, de consumo ou de atentados terroristas, contanto que se trabalhe com imensas e heterogêneas bases de dados. Se estes dados forem fornecidos pelos próprios indivíduos, como é o caso de boa parte da internet, tanto melhor. A sedução do modelo que já faz a fortuna das empresas citadas no documento consiste em seus poderes pretensamente preditivos. O monitoramento em massa de ações no presente, juntamente com a análise das correlações entre elas, permitiria estimar probabilidades de ocorrência de ações futuras.
Este modelo, já conhecido para nos ofertar produtos, links e serviços, é apropriado pelo aparato de vigilância estatal indiscriminada sobre internautas, sem que estes tenham conhecimento. No primeiro caso, trocamos informações sobre nossos modos de vida pelo uso de plataformas e serviços na internet. Sabemos que eles nos transformam em produtos de seus negócios, e ao mesmo tempo acreditamos que podem ser apropriados em outras direções sociais, políticas e econômicas. No segundo caso, as questões relativas à privacidade e aos dados pessoais mudam de escala e gravidade. No âmbito local, é urgente a votação de leis brasileiras que assegurem nossos direitos civis na internet, bem como a proteção de dados pessoais (o Marco Civil da Internet e a Lei de Proteção de Dados Pessoais). Em escala global, o fantasma do “Big Brother” se transmuta nas promessas do “Big Data”, criando uma agenda que atravessa tanto a segurança nacional quanto a economia de dados; tanto a publicidade direcionada quanto o combate ao terrorismo. Agenda que prescreve tacitamente, sob alegados e incertos poderes de prevenir males futuros, um presente de vigilância para todos.
Fernanda Bruno é professora do Instituto de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura da UFRJ
Por Fernanda Bruno
A imagem é familiar: na mira de aparatos de vigilância onipresentes, indivíduos têm cada uma de suas ações rastreadas e monitoradas por serviços secretos americanos. Perdemos a conta das vezes em que vimos tal cenário distópico nos filmes de Hollywood. A ficção nos habituou a uma imagem da vigilância estatal que a realidade vem, contudo, superar. Os recentes documentos divulgados pelo jornal britânico “The Guardian” mencionam um programa de vigilância da Agência Nacional de Segurança (NSA) dos Estados Unidos que, diferentemente da maior parte da ficção hollywoodiana, não se volta para alvos suspeitos ou culpados, mas para uma massa difusa de indivíduos e seus dados pessoais na Internet. Segundo os documentos, o programa PRISM permite que a NSA tenha acesso direto a servidores de grandes empresas da internet, sendo assim capaz de monitorar comportamentos de seus usuários em escala global. As empresas citadas — Microsoft, Yahoo, Google, Facebook, PalTalk, AOL, Skype, YouTube, Apple — fazem parte do cotidiano de bilhões de internautas e possuem dados extremamente sensíveis sobre seus hábitos, desejos e preferências em diversas esferas: pessoal, política, religiosa, econômica etc. Curiosamente, as redes digitais de comunicação distribuída, ditas pós-massivas, se tornam o território privilegiado da vigilância de massa.
Ainda que as declarações das instâncias envolvidas busquem minimizar o potencial de violação de direitos civis em jogo, o problema está posto. De fato, ele é apenas a face mais recente de uma série de ações e programas há muito em curso. Por parte do governo americano, desde os atentados de 11 de setembro de 2001, uma série de programas e leis vêm criando zonas de exceção que autorizam o monitoramento de dados e comunicações da população civil, sob a justificativa do combate ao terrorismo (Patrioct Act, 2001 e 2006; Waranteless Domestic Surveillance Program, 2001; Total Information Awareness Program, 2002; Foreign Intelligence Surveillance Court, 2007). Uma das peculiaridades do PRISM, ativo desde 2007, seria a sua aliança com as corporações privadas na internet, implicando uma mudança não só quantitativa, mas também qualitativa no acesso aos dados pessoais de internautas, uma vez que, segundo os documentos, a NSA teria acesso não simplesmente aos metadados das navegações (horário e local de conexão, por exemplo), mas também aos seus conteúdos (histórico de buscas, conteúdo de emails, transferência de arquivos etc).
Embora esta aliança seja até o momento negada em uníssono pelas empresas mencionadas, os documentos colocam em pauta uma lógica da vigilância cada vez mais comum ao Estado e ao setor privado. Um aspecto desta lógica está relacionado às promessas do chamado “Big Data”. O termo designa uma nova grandeza informacional que procede tanto do aumento da capacidade de estocagem como da emergência de um novo tipo de saber que tais volumes de dados gerariam. A suposição é a de que quantidades massivas de dados, submetidas a procedimentos algorítmicos apropriados, revelariam regras inscritas em suas correlações, permitindo projetar padrões de comportamento e intervir no curso das ações de inúmeros indivíduos, de modo a conjurá-las, quando indesejadas, ou incitá-las, se forem bem-vindas. Trata-se de um modelo polivalente. Pode-se extrair, por exemplo, padrões de intenções de voto, de consumo ou de atentados terroristas, contanto que se trabalhe com imensas e heterogêneas bases de dados. Se estes dados forem fornecidos pelos próprios indivíduos, como é o caso de boa parte da internet, tanto melhor. A sedução do modelo que já faz a fortuna das empresas citadas no documento consiste em seus poderes pretensamente preditivos. O monitoramento em massa de ações no presente, juntamente com a análise das correlações entre elas, permitiria estimar probabilidades de ocorrência de ações futuras.
Este modelo, já conhecido para nos ofertar produtos, links e serviços, é apropriado pelo aparato de vigilância estatal indiscriminada sobre internautas, sem que estes tenham conhecimento. No primeiro caso, trocamos informações sobre nossos modos de vida pelo uso de plataformas e serviços na internet. Sabemos que eles nos transformam em produtos de seus negócios, e ao mesmo tempo acreditamos que podem ser apropriados em outras direções sociais, políticas e econômicas. No segundo caso, as questões relativas à privacidade e aos dados pessoais mudam de escala e gravidade. No âmbito local, é urgente a votação de leis brasileiras que assegurem nossos direitos civis na internet, bem como a proteção de dados pessoais (o Marco Civil da Internet e a Lei de Proteção de Dados Pessoais). Em escala global, o fantasma do “Big Brother” se transmuta nas promessas do “Big Data”, criando uma agenda que atravessa tanto a segurança nacional quanto a economia de dados; tanto a publicidade direcionada quanto o combate ao terrorismo. Agenda que prescreve tacitamente, sob alegados e incertos poderes de prevenir males futuros, um presente de vigilância para todos.
Fernanda Bruno é professora do Instituto de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura da UFRJ