quinta-feira, 4 de março de 2010

Cuide de você (Comentário de Ilana Feldman)

Reproduzo o ótimo comentário que Ilana Feldman fez sobre meu último post acerca da exposição Cuide de Você (Sophie Calle). Assim que o tempo permitir, continuo o diálogo e agradeço desde já a Ilana por me dar a rara oportunidade de fazer a palavra circular neste blog.


"Fernanda,

Um prazer ler teus belos comentários. E este mesmo prazer me mobiliza a comentar algumas estratégias da Calle que, me parecem, caminham em sentido reverso do que dizes.

De antemão, é preciso dizer que vi a exposição aqui em São Paulo, no Sesc Pompéia, então minha percepção advém também de certa organização do espaço. Tendo em vista essa organização e disposição dos elementos na “cena”, meu primeiro questionamento, de saída, é a presença da carta original de X, na verdade um email, impressa em papel e distribuída aos espectadores ao final do percurso. Ora, se a exposição trata, prioritariamente, da questão da mediação, mediação que, a partir de leituras, análises, interpretações e dissecações de 107 leitoras, permite que mentalmente (e inventivamente) remontemos e reescrevamos esta, vale dizer, banal carta, por que a carta de X, a “carta em sim mesma”, precisa nos ser então revelada? Este gesto para mim, ao contrário de “multiplicar os lugares de fala a partir das passagens do individual ao coletivo” (algo que belamente acontece no filme Jogo de cena, de Eduardo Coutinho, como já comentaste aqui no blog), resvala em unívoca, estreita e simplória “vontade de verdade” (Nietzsche). Contraditoriamente então, em vez do elogio (ou da problematização) da mediação, temos simplesmente uma resposta a um desejo (tão culturalmente sedimentado) de acesso à verdade de uma suposta imediatez: o objeto de disputa e de discurso em si mesmo, fetichizado.

Outro ponto que me parece importante diz respeito ao repertório - burguês - dessas 107 mulheres escolhidas, cujas posições sociais são praticamente homogêneas, à exceção da papagaia, claro, da agente penitenciária e da adolescente dona do melhor comentário: “Ele se acha!”. Toco nessa questão da posição social porque o dispositivo que sustenta a exposição me parece sofrer de uma grave entropia: no geral, a diversidade das leituras encobre, a meu ver, uma mesma posição discursiva, uma mesma posição sentimental, marcada pelos códigos de reação do melodrama burguês - o ressentimento feminino -, ainda que vez ou outra haja algum humor. Porém, como Sophie Calle não é boba, o que ela faz para evitar esse lugar (re)sentimental? Ela convida profissionais liberais, mulheres “bem sucedidas”, dotadas de “talento” e de expertise técnica para “interpréter la lettre sous un angle professionnel”. Esta é a estratégia que mais me choca porque, ainda que ela seja uma interessante “arma” para a vingança do abandono e do amor perdido, ela se equipara a todas as outras estratégias de tecnificação e instrumentalização da linguagem. Estratégias que, como sabemos, sustentaram os mais terríveis regimes políticos e ainda hoje sustentam os mais terríveis modos de gestão empresarial.

Por fim, como o nome da exposição já diz, o “cuidado de si” - ainda que capitalizado na forma de um dispositivo “artístico e terapêutico”, como dizes - foi tornado um modo de gestão e administração da dor em que o feminino, no lugar do espaço coletivo e social da partilha, da transgressão e da traição (em relação à tradição), é revertido em mera “consultoria”.

Bem, Fernanda, desculpe o tão longo comentário, mas essa exposição me fez sair engasgada, para não dizer irada, e só a riqueza do teu post para me fazer conseguir desengasgar.

Beijo, Ilana"

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