domingo, 24 de junho de 2007

Promessas do visível: profetas da chuva no sertão cearense

Fotografia: Tiago Santana

"
De letra não entendo quase nada não... mas de natureza... é outro livro aberto. Às vezes o cabra diz: "Como é que você entende?" Meu amigo, ver é uma coisa, conhecer é outra."
A fala é de Chico Leiteiro, cearense e profeta da chuva. Como outros pequenos agricultores e trabalhadores do Sertão Central do Ceará, Chico Leiteiro interpreta sinais na natureza para antever a chegada de um bom ou mau inverno. Tomei contato com os profetas da chuva através do livro organizado por Karla Holanda Martins, lançado no final de 2006 (Tempo d'Imagem). Desde então, organizei com a autora um evento na UFRJ e uma mesa redonda no V Conpsi/Maceió, sempre procurando explorar o riquíssimo material que encontramos nesse livro, o qual reúne depoimentos dos profetas (também disponíveis em audio, no CD-Rom anexo), fotografias de Tiago Santana e artigos de pesquisadores de diversas áreas de conhecimento.

Nessas reflexões iniciais, que serão publicadas num segundo volume dos Profetas da Chuva, venho tentando explorar o regime de visibilidade posto em prática por estes profetas da natureza, que seguem quase na contra-mão da promessa de visibilidade máxima encontrada em diversos setores da mídia e da ciência, onde vige o princípio de tudo ver e tudo mostrar. Ainda que em toda profecia esteja empenhado um "ver além", tal não implica uma hipertrofia da visão, mas sim um diálogo entre o visível e o invisível. Merleau-Ponty nos orienta aqui: "ver é sempre mais do que se vê". Nesta idéia, de que a frase de Chico Leiteiro parece ser uma paráfrase involuntária ("ver é uma coisa, conhecer é outra") está suposto não um "mais ver" e sim uma reserva, uma dimensão de invisibilidade que se afirma como a condição de possibilidade da própria visão. Esta perspectiva implica uma relação com o visível onde este guarda segredos, onde as coisas têm uma certa opacidade a ser desvelada, onde o que se dá a ver supõe sempre um diálogo com o que não se vê e não se revela imediatamente. Os profetas da chuva, num corpo a corpo com o mundo, lêem os signos discretos da vida sertaneja – as teias das aranhas, o deslocamento das formigas, a direção dos ventos, os cheiros, os calores – e entrevêem o que não está aí, o que não se vê imediatamente: o tempo futuro, no duplo sentido - a chuva ou a seca por vir.
Trata-se aqui do enigma da visão. O invisível, assim concebido, não é uma outra visibilidade alhures nem uma impotência, mas a própria condição da visibilidade. Embora remeta a uma incompletude, o invisível implica um “ver além”, pois indica que o visível tem uma espessura, encobre um excesso de realidade que convida a exploração. Por isso “ver é sempre ver mais do que se vê”, por isso também a visão não é conhecimento nem representação de uma totalidade; é relação e abertura a um mundo que sempre ser revela por aspectos e perfis, guardando em todo visto a promessa de um por ver. É neste sentido que os profetas da chuva mantêm com o mundo um diálogo que remete à dimensão invisível da visão, fazendo o visível prometer tempos futuros. Nessa promessa, o que se reinventa é nada menos que a vida.


Abaixo, capa do livro Profetas da Chuva (Organizado por Karla Holanda Martins. Fortaleza: Tempo d'Imagem, 2006)

3 comentários:

Adriana Amaral disse...

oi Fernanda! Parabéns pelo blog :) vi o link no blog do alex...quando quiser, eu divulgo lá no meu. bjo

Fernanda Bruno disse...

Ei Adriana!! É um prazer te ver aqui. Assim que colocar esse blog no ponto eu te aviso. Obrigada e beijos,
Fernanda

paoleb disse...

gostei muito deste comentário sobre o não visto, não como incompletude, mas como condição da própria visão. deus como olho once again.